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16
ago/23

Diário de um Missionário na Amazônia peruana – Parte 3

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Nesta terceira parte do Diário de um Missionário, o Frei Paulo Henrique Cintra, OSA, descreve um pouco mais sobre a experiência de missão na Amazônia peruana iniciada em julho. Destaca a difícil realidade das pessoas empobrecidas, que sofrem pela falta de inúmeros recursos. Fala sobre as experiências que mais o marcaram até então, sobretudo, a fé, a acolhida e os sorrisos. E, também, sobre o dia a dia em Iquitos e suas atividades junto às comunidades. A  Confira no final deste texto, as duas primeiras matérias (partes 1 e 2).

"As pessoas em geral são muito simples, seja em termos econômicos ou ao que se refere à instrução.
O que não apequena em nada a sua dignidade. É bonito de se ver sempre o sorriso na boca de tanta gente. O que mais me surpreendeu foi a acolhida incondicional, a confiança filial, a cercania, a liberdade e a fraternidade..."

Leia o relato a seguir:

O Vicariato de Iquitos conta com um grupo de 15 religiosos, em sua maioria espanhóis. O período entre os meses de julho a setembro corresponde às férias dos irmãos. Então, mesmo que se revezem, o fato de serem poucos, dificulta a assistência religiosa e pastoral nesses meses. Por conta disso estou alocado na cidade de Iquitos para auxiliar em três paróquias concomitantemente.

Ainda que as paróquias estejam todas no mesmo perímetro urbano, é curioso ver os diferentes perfis de atendimento e de assistência pastoral. A paróquia San Agustin por exemplo, está localizada no centro da cidade, e possui menos articulação pastoral do que as demais, especialmente se considerarmos o fato dela estar intimamente ligada à vida comercial da cidade. São poucos aqueles que moram no território paroquial e que participam assiduamente de seu quotidiano. A maioria do público é da terceira idade.  Aqui, tenho me ocupado com as celebrações da palavra ao longo da semana.

Na fraternidade San Agustin, onde estou hospedado, é onde residem os religiosos que trabalham tanto na Paróquia San Agustin, quanto na catedral San Juan Bautista. Como os atuais párocos estão de férias, frei Ladislau passou a ajudar nas celebrações da Catedral, enquanto fiquei responsável pela paróquia San Agustin. Mas, no último dia 24 de julho, frei Ladislau regressou à Tanzânia, seu país de origem, ao concluir o período de estágio pastoral realizado aqui em Iquitos. Em seu lugar chegou o frei Silvio, que é panamenho, e que estava até então, na cidade de Nalta, auxiliando nos últimos meses, a paróquia San Felipe y Santiago.

A paróquia de La Inmaculada Concepción presta mais um serviço sacramental e de culto. É perceptível o grande número de crianças e jovens que estão frequentando a formação catequética. Isso sem considerar os encontros frequentes dos pais dessas crianças e jovens envolvidos nessa formação. Há também uma grande procura pelo sacramento do matrimônio, e se multiplica as formações pré-matrimoniais. Nessa paróquia eu tenho tido a oportunidade de conhecer as suas comunidades periféricas e realizar aí as celebrações dominicais da palavra.

Não obstante, a capela Santa Rosa localizada na região de Masusa tem sido a experiência que mais me chamou a atenção nessa paróquia. Masusa é uma comunidade que se localiza às margens do Rio Amazonas. Ela faz parte de um dos muitos movimentos espontâneos de ocupação territorial das famílias. Ou seja, como não ouve um movimento popular que organizou essa ocupação, nem um planejamento governamental de urbanização, a mesma aconteceu de modo desenfreado e irregular. Apesar de não ser um bairro novo, a população ainda não desfruta dos seus direitos e dos serviços básicos de saneamento, educação, saúde, etc. Deste modo, a capela é um dos poucos espaços de socialização que o bairro possui, e é bastante frequentada pelas famílias tanto para as atividades pastorais e de culto, mas também para momentos de confraternização e de assistência social

As pessoas em geral são muito simples, seja em termos econômicos ou ao que se refere à instrução. O que não apequena em nada a sua dignidade. É bonito de se ver sempre o sorriso na boca de tanta gente. O que mais me surpreendeu foi a acolhida incondicional, a confiança filial, a cercania, a liberdade e a fraternidade. Não apenas comigo ou com o frei Ariel que aí esteve, mas entre eles mesmos, o que sinaliza e testemunha uma profunda experiência de comunidade cristã.

Já a paróquia Santo Cristo de Bagazán tem sido a minha menina dos olhos. Aqui eu tenho tido mais oportunidades e tempo para estar com as pessoas. Frei Walker, que é o pároco, tem se mostrado um grande irmão confiando plenamente os trabalhos sociais aos meus cuidados.

Como tenho auxiliado religiosamente a cozinha solidária, que aqui eles chamam de comedor, hoje eu já consigo identificar os anciãos por seus nomes, e já sou reconhecido por eles nas ruas da cidade. As voluntárias Deolícia, Nambet, Lorena e Muñequita têm sido minhas companheiras de trabalho em Bagazán. Com elas tenho dividido os meus dias aqui nessa paróquia, seja no comedor, nas rifas ou tómbolas para angariar fundos para seguirmos com o trabalho de assistência aos mais idosos da comunidade.

Como disse, Frei Walker tem sido um grande irmão. A sua relação com seus paroquianos é marcada por um grande respeito e cuidado mútuo, que é fruto de sua vida fraterna. Com ele tenho tido a oportunidade de conhecer melhor a cidade, os costumes da população e as atividades culturais mais comuns. Apaixonado por futebol, sempre quando pode, está acompanhando os campeonatos da cidade, bem como, jogando com os paroquianos em diferentes campos de futebol espalhados por Iquitos.

Ao acompanhá-lo em um dos seus jogos, eu tive uma grande surpresa de onde eu menos esperava. Estávamos num dos campos de futebol privados da cidade, eu, Walker e algumas pessoas da sua família. Conforme eu conversava com as pessoas, se acercaram duas crianças ao terem me escutado dizer que era brasileiro. Em cada intervalo entre os diálogos com as pessoas que nos acompanhavam, as crianças inocentemente chamavam a minha atenção e perguntava sobre o Brasil.

João e Maria (nomes fictícios), são duas crianças de uma família muito pobre do bairro. Eles trabalham diariamente vendendo espetinhos de banana e outros petiscos que a mãe faz para poder ajudar a família se manter. João é uma criança de poucas palavras e muito observador. Ele sonha em ser jogador de futebol profissional, por isso, sempre que pode faz aulas de futebol numa pequena escolinha do bairro. Junto com sua irmã, e com os pés descalços, percorrem o bairro vendendo uma rifa para comprar a sua primeira chuteira e poder participar dos campeonatos de futebol da cidade.

Maria é uma criança muito comunicativa e bastante curiosa. Mas parecia ter somente seus irmãos como amigos. Ela me perguntava muitas coisas sobre as crianças no Brasil e se elas possuíam muitos amigos. Depois de respondê-la, eu a perguntei se ela tinha muitos amigos e se gostava de brincar com eles. Assim que conclui a minha pergunta, a sua fisionomia mudou imediatamente, com um semblante triste ela me respondeu olhando para o chão, dizendo que as crianças do seu bairro não gostavam dela e de seus irmãos, e que era recorrente o bullying por parte dos seus vizinhos.

Maria tratou de mudar de assunto muito rápido, e seguiu o seu interrogatório sobre a vida e as coisas no Brasil. Descobri que toda a sua curiosidade é pelo fato de sua mãe ser brasileira; e pelo que me contaram sua mãe é amazonense e se casou muito jovem com um peruano. Depois de estabelecer residência aqui em Iquitos nunca mais regressou ao Brasil, mas sempre contava aos seus filhos as suas histórias vividas no seu país, de como é a sociedade, a língua, etc.

O encontro com essas crianças me marcou profundamente, sobretudo por me chamar a atenção para as pequenas coisas da vida. Tudo para elas parecia algo grandioso demais, quase que inalcançável, palpável apenas em seus sonhos. Desde uma sandália, estudos, uma casa pintada, um tênis, um relógio, atenção, um olhar afetuoso, respeito.

Coisas que para muitos de nós é banal, básico, para muita gente em nossas sociedades, aqui no Peru, no Brasil, na América Latina, ainda são coisas inacessíveis. O mais agravante a meu ver, não é simplesmente o fato de não terem acesso aos elementos mais triviais para uma vida minimamente digna. O que me parece ser mais perverso em nossa sociedade é o sentimento de culpa que nossa cultura produz em nosso povo. Como se o fato de não terem nem o mínimo os fizessem menores. Ou ainda, que, tudo se dá por sua culpa de não terem trabalhado o suficiente para “merecerem” possuir alguma coisa.

Ainda que existam diferenças culturais substanciais entre o Peru e o Brasil, ambos sofrem do mesmo mal. A desigualdade social é tão grande, que milhões de pessoas em ambos os países não gozam dos seus direitos; de um teto para se abrigar; um chinelo no pé; barriga cheia; sono; educação; saúde; amigos; carinho; respeito.

Conforme a vida vai me possibilitando encontros como esses com o João e a Maria, mas também com os idosos que dependem do comedor da paróquia de Bagazán, ou ainda tantos outros, me fazem sempre me questionar sobre minha fé. Não se trata de um questionamento como o de muitos que se afirmam ateus, sobre a existência ou não de Deus. Meu questionamento se sustenta na práxis cristã. De que vale a minha fé, minha consagração, se não dá respostas às contínuas manifestações de Deus?

Na obra de Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov existe um diálogo muito instigante entre os quatro irmãos protagonistas: Dmítri, Ivan, Aliocha e Smerdiakov. Mas nos interessa aqui apenas os argumentos do Ivan, que defende uma tese muito conhecida por todos nós. Ele apresenta seus argumentos por meio de uma parábola intitulada “O grande inquisidor”, e defende a ideia de que se Deus não existe tudo é permitido, e por isso há tanto mal no mundo.

Em algum momento de nossas vidas possivelmente já nos depararmos com essa pergunta do Ivan: “Se Deus existe, porque ele permite a existência do mal?”. Ou ainda, se a traduzirmos para nossa realidade Latino Americana poderíamos nos perguntar: “Onde estará Deus, diante de tamanha desigualdade, sofrimento e injustiça?”

Seguindo as tradições jesuânica e agostiniana, as respostas a essas perguntas são tão obvias que passam despercebidas ao nosso entendimento. Deus está nas pessoas, sobretudo nas que mais sofrem e são exploradas. Deus está aí, debaixo do nosso nariz, e não o reconhecemos.  Deste modo, por incapacidade de reconhecê-lo aí onde está, atribuímos a Deus o mal que fazemos, como se Ele fosse o responsável por esse mal. Por isso se faz tão necessário resgatar o conceito de mal em Agostinho, ou seja, o mal como ausência. Onde Deus não está, abunda a ausência! Diante de tamanho buraco queremos preenchê-lo com coisas, poder, status, e daí resulta o mal. Deus segue presente nas vítimas, nos despossuídos, nos empobrecidos, nos marginalizados. E onde Deus não habita, o mal é fecundo.

Portanto, diante de nossa realidade Latino Americana, cabe a todo cristão fazer de suas vidas um testemunho que anuncie a presença de Deus. Nosso testemunho não se reduz a sacramentos, cultos ou templos, mas se realiza plenamente na promoção da vida daqueles que menos a possuem. É na experiência genuína de Deus que nos convertemos e nos tornamos agentes de transformação da nossa realidade, fazendo irromper o Reino de Deus em nosso meio. Isto é, a vida plena, humanizada, profundamente marcada pela partilha e fraternidade.

Deste modo, enquanto existir ausência de Deus, isto é, do Amor nos corações da humanidade, estará o nosso coração inquieto e trabalhando para que todos possamos um dia descansar nossos corações nesse Amor.

Acompanhe os relatos:

Parte 1 - Chegada a Iquitos e contextualização da missão

Parte 2 - Atividades pastorais e iniciativas solidárias

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