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mai/20

Uma só alma e um só coração: a comunidade enquanto valor em Santo Agostinho

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1. Pra início de conversa... um olhar à nossa volta

No início da Idade Moderna, com o surgimento e desenvolvimento do capitalismo, a consequente ascensão da burguesia e a revolução científica do século XVII, o projeto racional moderno, anunciado por René Descartes, perseguido e remodelado por tantos outros que lhe sucederam, teve na descoberta do indivíduo seu ponto culminante e, de fato, a afirmação do eu foi sua grande novidade. Assim, com uma subjetividade construída sobre as noções de interioridade e reflexão sobre si mesma, o homem moderno foi moldando suas relações e o mundo a partir dessa tradição ocidental do individualismo. Todavia, na mesma, o indivíduo manifestava “sua autonomia justamente pela criação do vínculo social, do poder político, da lei civil”[1], realidade que contrasta ao observável nos tempos atuais, ditos pós-modernos, onde o autocentramento do sujeito atinge níveis tão elevados que qualquer vinculação a um compromisso ou a um projeto coletivo ou futuro vê-se fadado ao fracasso.

O mundo pós-moderno é, pois, marcado por uma crescente fragmentação, provisoriedade e imediatez da realização dos desejos. A gramática existencial que estruturava as relações do homem com o tempo, o espaço, o corpo, o outro e a sociedade não atingem o mesmo nível de legitimação de outrora. As mudanças se dão muito ligeiramente, os referenciais são vários e a verdade multifacetada. Os tempos são líquidos e complexos. Segundo Joel Birman, o autocentramento do sujeito – conjugado de maneira paradoxal com o valor da exterioridade – somado à inexistência da história e à negação da alteridade é a marca fundamental de uma cultura do narcisismo.  O indivíduo preocupa-se tanto com o próprio eu que é capaz das coisas mais ridículas para elevar-se suntuosamente perante as outras pessoas.  Tamanha estetização do eu, por consequência, gera uma cultura da imagem, em que o aparecer social do indivíduo é forjadamente manipulado e influenciado pelas mídias. O sujeito, apresentado pelos meios de comunicação de massa, deve ser polido até atingir a aparência ideal para se apresentar na cena do social. Uma hegemonia da aparência, amparada pela brilhantina eletrônica, se instaura negando a singularidade, o sujeito da diferença. É a cultura do espetáculo,[2] que na tão recorrente demanda por chamar a atenção para si, faz da exibição, a exaltação do eu o fundamento da existência e o molde plasmador das individualidades. Na sociedade do espetáculo a exigência da performance é a lei maior. E assim como na cultura da imagem, o ser e o parecer se confundem e até se identificam. Instaurado um discurso narcísico do espetáculo, as hierarquias entre verdadeiro e falso, original e cópias se invertem e o indivíduo, autocentrado, paradoxalmente, agrega exterioridade, perdendo as ricas contribuições da interioridade.

Diante desse mal já tão alastrado e arraigado em nós, será possível encontrar um caminho alternativo e mais saudável? Para Santo Agostinho, a vida comunitária é, sem dúvida, o caminho. Mas essa proposta ainda tem algum valor?           

2. Santo Agostinho e suas experiências comunitárias: um ideal a partir da vida[3]

Santo Agostinho sempre prezou pela companhia dos amigos, estar junto, con-viver.

 Outras coisas havia em meus amigos que me atraíam e cativavam: conversar e rir juntos; servir-nos uns aos outros;
ler em comum bons livros; fazer pilhérias e elogios recíprocos; discordar algumas vezes sem rancores nem querelas – como
discorda um homem de si mesmo – e, na rara discordância, amadurecer o frequente consenso, ensinar-lhes e deles aprender, sentir saudades dos ausentes e recebê-los com alegria ao voltarem. Com esses gestos e outros semelhantes que brotam do coração dos que amam
e são amados, que se manifestam pelo rosto, pela boca, pelos olhos e por outras mil agradáveis expressões, como faz o fogo com os combustíveis, se fundem as almas, e de muitas se faz uma só. (Confissões IV,8,13)

Essa vida compartilhada tornou-se, por sua vez, o modus vivendi para aqueles que desejavam seguir seus passos. O projeto monacal agostiniano, daí decorrente, diferenciava-se do modelo eremítico, isolado, e assumindo características cenobíticas, ou seja, comunitárias. Um breve olhar sobre essa sua trajetória poderá nos ajudar a compreender melhor essa busca de Deus em comunidade.

Ainda em Milão, logo após a conversão, Agostinho pensou viver com os amigos em comunidade, na busca da sabedoria divina. (Cf. Confissões VI,14,24). Essa experiência, ainda muito incipiente, não obteve muito sucesso. No entanto, sem desistir desse projeto, mais tarde, durante nove meses, de agosto de 386 a abril de 387, Agostinho fez sua preparação para o batismo em Cassissíaco, próximo a Milão, junto com sua Mãe, o filho Adeodato, o irmão Navígio e mais alguns parente e amigos, vivendo um ritmo de vida monástica: oração, trabalho, estudo, leitura da Bíblia, etc.

Em 388, de volta a Tagaste, Agostinho se retira com o filho e amigos para um sítio fora da cidade e aí passa três anos em ritmo de vida religiosa, sem, contudo, deixar de fazer pastoral, sobretudo escrevendo para os de fora. Mudando-se para Hipona, em 391, é feito presbítero. Todavia, se entende e vive como religioso, ao ponto de abrir uma comunidade para leigos, tendo sempre como ideal a Comunidade de Jerusalém segundo Atos.

Em 395/396, Agostinho é feito bispo e, para não atrapalhar o ritmo habitual da comunidade, muda-se para a residência episcopal, formando ali uma nova comunidade com seus padres e ministros. Para Agostinho não há contradição entre Vida Religiosa e serviço apostólico: “O amor da verdade busca o ócio santo, mas as exigências da caridade aceitam o negócio justo.” (A Cidade de Deus XIX,19)

            Veja-se que Agostinho sempre fez questão de estar rodeado pelos amigos, de viver em uma comunidade. A comunhão, ideal dos primeiros cristãos, tornou-se seu projeto de vida, tornou-se também seu ideal. Não obstante, é a partir dele que Agostinho fundamentou a sua Regra de vida, seguida até hoje por inúmeras famílias religiosas. Debruçando-se sobre ela poderemos, sem dúvida, recolher algumas luzes para o enfrentamento do mal do individualismo, redescobrindo a beleza da vida em comum.

 

3. A “regra de ouro” agostiniana... redescobrindo o valor da comunidade

A Regra para os servos de Deus, escrita por Santo Agostinho por volta do ano 397, se comparado a outras regras de vida, é um texto relativamente simples, contendo apenas 49 parágrafos, distribuídos em 8 capítulos. Não nos interessa aqui aprofundá-la em seus pormenores, o que nos exigiria grande esforço hermenêutico, senão perceber o caminho que a mesma propõe e que nos ajuda a entender o valor da comunidade para Santo Agostinho.

Na Regra, Santo Agostinho parte de um princípio fundamental, o amor: “Antes de tudo, irmãos caríssimos, amai a Deus e depois ao próximo, pois estes são os principais mandamentos que nos foram dados” (Regra 1). Essa deveria ser a maior regra de vida para um agostiniano, para um cristão, para a humanidade. Perceba-se que Santo Agostinho faz ecoar o duplo mandamento, preconizado pelo Evangelho, insistindo conquanto que, “É começando pelo segundo amor que se chega ao primeiro amor” (Sermão 265,9). E ainda: “O amor de Deus é o primeiro que nos é prescrito, o amor do próximo é o primeiro que se deve praticar” (Com. a Jo 17,8).

A partir desse núcleo fundamental descortina-se a finalidade da vida em comum: “Em primeiro lugar – já que com este fim vos haveis congregado em comunidade – vivei unânimes em casa e tende uma só alma e um só coração orientados para Deus” (Regra 3). Importa para Agostinho que aqueles que abraçaram esse projeto persigam com radicalidade, ou seja, no mais profundo de si, a união de almas e corações, o “monos”, que longe de anular as singularidades, as pressupõe e valoriza. “A comunidade não é um reino homogêneo onde todos participam de uma mesma natureza e uma mesma ideia. É um âmbito de singularidades que se ajudam mutuamente na árdua tarefa de existir.”[4]

A prova concreta dessa valorização das singularidades se observa pela via proposta por Santo Agostinho para a vida em comum: a comunhão de bens e a distribuição proporcional. Na comunidade agostiniana cada um oferece o que tem e recebe o necessário: “E não possuais nada como próprio, mas tende tudo em comum, e que o Superior distribua a cada um de vós o alimento e a roupa, não igualmente a todos, pois nem todos sois da mesma compleição, mas a cada qual segundo o necessitar...” (Regra 4). Essa base material, resguardada por aquela de caráter espiritual, a humildade, é, sem dúvida o eixo central em torno do qual deve se pautar a vida em comunidade e a busca de cada um pela sua própria perfeição:

Queres ser grande? Começa por ser humilde. Planejas levantar o edifício de tua própria perfeição?
Começa por escavar os alicerces de tua humildade. E quanto mais alto o edifício, tanto mais profundo os alicerces.
Vê bem que os edifícios sobem quando os alicerces são aprofundados. De tal forma que a grandeza torna-se pequena
e a pequenez grande. (Sermão 69,1,2)

Daí decorre a atitude fundamental dos que descobriram o valor da comunidade: honrar a Deus uns nos outros, do qual fomos feitos templos (Cf. Regra 9). Ora, vivendo em uma sociedade que apregoa um individualismo competitivo e consumista, parece-nos atual o conselho-pro-vocação de Agostinho:

Os que querem fazer-se morada do Senhor não devem alegrar-se de seus próprios bens, mas do bem comum.
Há muitos, todavia, que amam seus próprios bens, procura seu próprio proveito, gozam de seu próprio
poder e ambicionam seus próprios interesses.
Como poderão esses ter um só coração e uma só alma? (In ps. 131,5)

E nós, como poderemos ter um só coração e uma só alma?

 

Fr. Tailer Douglas Ferreira, OSA

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[1] MACDOWELL, João Augusto A. A. Ética e política: urgência e limites. Síntese, Belo Horizonte, n. 48, p. 14, 1990.

[2] Cf. DEBORD, Guy. La Société du spectacle. Paris: Gallimard, 1967.

[3] Cf. BOFF, Clodovis. A Regra de Santo Agostinho: apresentação e comentários de Clodovis Boff. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 18-20.

[4] ROSELLÓ, Francesc Torralba. El valor de la comunidade a luz del espíritu agustiniano. In: ROSELLÓ, Francesc Torralba; GUAITA, Carmen; VIVES, Narcís. El valor de lo comunitário em la escuela agostiniana. Madrid: Federación Agustiniana Española, p. 31. (Tradução nossa)

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