Nas últimas semanas ganhou evidência, no cenário nacional, o debate sobre a jornada de trabalho. A publicidade aumentou depois que foi empreendida a campanha por assinaturas, entre os parlamentares, em defesa da proposta de emenda à Constituição (PEC) que visa reduzir a jornada máxima de trabalho de 44 para 36 horas semanais. Essa pauta, tem sido defendida e propagada pelo movimento Vida além do Trabalho (VAT) que, por sinal, já conseguiu a adesão de 1,3 milhão de assinaturas.
A proposta tem gerado variadas reações nos diversos setores da sociedade, e seu conteúdo levanta uma série de reflexões. Há quem diga que a medida representaria o “fim da economia” e que as consequências para as relações de mercado seriam desastrosas. Outros defendem o contrário, que a medida, qualificando a vida dos trabalhadores, lhes possibilitaria uma melhor condição de consumo. Outros ainda, utilizando referenciais que ultrapassam essa consideração simplesmente econômica, defendem que a proposta tende a qualificar a vida dos trabalhadores permitindo-lhes, por exemplo, conviver mais com a família, gozar de maior tempo de descanso e investir na própria formação.
No Ocidente, fortemente influenciado pela cultura greco-judaico-cristã, o trabalho é um tema que permite a abordagem de variadas epistemologias. Não se pode negar, por exemplo, a influência da religião na compreensão ocidental do trabalho. Neste sentido, a evidência do tema, reclama, neste areópago de vozes (contrárias e favoráveis), a contribuição da Teologia que, desde uma perspectiva própria, pode dizer uma palavra agregativa.
A tradicional Teologia do Trabalho tem como importante referente a narrativa do Gêneses (cf. Gn 1-3). Inspirada nesta narrativa bíblica das origens, a Teologia entendeu o trabalho como participação na potência criativa de Deus; o ser humano foi chamado a assumir um papel co-criador. A sequência da narrativa bíblica, neste sentido, é expressiva: Deus traz a criação à existência; o primeiro humano é criado e recebe a responsabilidade de “cultivar e cuidar” do jardim; o trabalho é dividido entre os sexos, e o homem é destinado a labutar entre “espinhos e cardos” por causa de sua transgressão.
O magistério católico confiou nesta narrativa do Gêneses para articular normas de ética social – incluindo questões de salário, segurança no emprego e direito de organização – mas seu histórico de desenvolvimento de termos para falar pastoralmente a trabalhadores individuais é misto. A encíclica de João Paulo II de 1981 “Laborem Exercens: Sobre o trabalho humano”, por exemplo, enfatiza a experiência subjetiva do trabalhador, que carrega a imago Dei e, assim, confere ao trabalho sua dignidade.
Conforme diz a Encíclica, “o trabalho é um bem do homem. E se este bem traz em si a marca de um bonum arduum — ‘bem árduo’ — para usar a terminologia de Santo Tomás de Aquino, isso não impede que, como tal ele seja um bem do homem. E mais, é não só um bem ‘útil’ ou de que se pode usufruir, mas é um bem ‘digno’, ou seja, que corresponde à dignidade do homem, um bem que exprime esta dignidade e que a aumenta. Querendo determinar melhor o sentido ético do trabalho, é indispensável ter diante dos olhos, antes de mais nada, esta verdade: o trabalho é um bem do homem — é um bem da sua humanidade — porque, mediante o trabalho, o homem não somente transforma a natureza, adaptando-a às suas próprias necessidades, mas também se realiza a si mesmo como homem e até, num certo sentido, ‘se torna mais homem’.” (LE, n. 9)
Se considerado dessa forma – bem útil e digno que torna o ser humano mais humano – o tema do trabalho merece uma problematização no contexto contemporâneo. Se ele deve favorecer a dignidade do trabalhador, o que dizer da exaustiva e massacrante jornada à qual estão submetidos a maioria dos trabalhadores? O que dizer sobre a ausência ou diminuto intervalo e espaço de descanso entre as jornadas? Do ponto de vista teológico, a reflexão sobre a jornada de trabalho e a dignidade deste deve vir acompanhada por uma Teologia do descanso. A própria narrativa do Gêneses considera esse aspecto que carece ser descoberto e desenvolvido: o direito e a sacralidade do repouso.
De acordo com o filósofo católico alemão Josef Pieper (1904-1997) o repouso está alinhado com o propósito último da existência humana. O Papa Francisco, na Encíclica Laudato Si’, ecoa Pieper ao dizer: “somos chamados a incluir em nosso trabalho uma dimensão de receptividade e gratuidade” (LS, n. 237). Esses aspectos – receptividade, gratuidade e descanso - resistem à hegemonia da condição moderna de “trabalho total”.
Como bem lembrou o Papa Francisco, “o ser humano tende a reduzir o descanso contemplativo ao âmbito do estéril e do inútil, esquecendo que deste modo se tira à obra realizada o mais importante: o seu significado. [...] Assim, a ação humana é preservada não só do ativismo vazio, mas também da ganância desenfreada e da consciência que se isola buscando apenas o benefício pessoal. A lei do repouso semanal impunha abster-se do trabalho no sétimo dia, ‘para que descansem o teu boi e o teu jumento e tomem fôlego o filho da tua serva e o estrangeiro residente’ (Ex 23, 12). O repouso é uma ampliação do olhar, que permite voltar a reconhecer os direitos dos outros. Assim o dia de descanso, difunde a sua luz sobre a semana inteira e encoraja-nos a assumir o cuidado da natureza e dos pobres”. (LS, n. 237)
Nessa esteira de pensamento, devemos também considerar o destino de toda a criação, ou seja, a comunhão com Deus. O repouso não é simplesmente descansar do trabalho. É, em sua forma mais elevada, uma celebração da existência. Por isso, além das implicações econômicas, filosóficas, sociais, jurídicas e trabalhistas, o debate sobre a jornada de trabalho deveria considerar esse fundo teologal que permeia o labor humano. E a Teologia do Trabalho, por sua vez, deveria apropriar-se, ainda mais, de uma possível (e necessária) Teologia do Descanso.
Frei Jeferson Felipe Cruz, OSA
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