Uma recepção do Sínodo a partir da Igreja no Continente latino-americano e caribenho
No período dos anos 2021-2024, ocorreu o processo sinodal, que se encerrou com a Segunda Sessão nos dias 2-27 de outubro de 2024. Sínodo que teve como objetivo desencadear um processo de uma Igreja em estado permanente de sinodalidade, pois a sinodalidade é constitutiva da Igreja – a Igreja é por natureza sinodal! Ao mesmo tempo, o Sínodo da sinodalidade tinha também como preocupação a implementação de uma cultura eclesial laical, por entender que o batismo é a fonte de todos os ministérios, pelo qual se dinamiza um povo na corresponsabilidade de todos os batizados (Cf. Documento Final, n. 21-22).[1]
Do que trata, quando se fala de sinodalidade? No DF[2], se afirma: “a sinodalidade é o caminhar juntos dos Cristãos com Cristo e para o Reino de Deus, em união com toda a humanidade; orientada para a missão, implica o encontro em assembleia diversos níveis da vida eclesial, a escuta recíproca, o diálogo, o discernimento comunitário, a formação de consensos como expressão da presença de Cristo no Espírito e a tomada de uma decisão em corresponsabilidade diferenciada.”(n. 28) O processo do próprio Sínodo foi sinodal: três anos de um processo a partir das Igrejas locais dos cinco continentes. De baixo para cima, um processo indutivo de escuta e discernimento, o processo passou por assembleias diocesanas e a síntese das contribuições, pelas Conferências Episcopais Nacionais, convergindo para Assembleias Continentais. No âmbito da Igreja inteira, foram duas Assembleias Sinodais, que desembocaram no Documento Final, que foi assumido pelo Papa Francisco como único Documento do Sínodo e integrante do magistério pontifício.
O Sínodo quis retomar o processo de recepção do Concílio Vaticano II (1962-1965), e mais que isso, sincronizar essa recepção do Vaticano II nos cinco continentes ao ser constatado que o Concílio é recebido em ritmo e grau muito distintos, ou seja, há muita disparidade, divergências e distância entre os continentes, entre as Igrejas de um continente, entre as Igrejas de um mesmo país, no que diz respeito à recepção do Vaticano II. Fala-se, inclusive, de retrocesso e involução eclesial que ocorreram nas últimas décadas antes do Papa Francisco. Isso pode ser constatado, sobretudo, com o clericalismo, com uma Igreja hierárquica, piramidal e patriarcal, com leigos clericalizados, com o binômio clero-leigos, com uma Igreja elitista e longe da realidade da vida e da causa dos pobres em muitas experiências eclesiais.
O que se pode e se deve compreender é que o Sínodo significou um avanço por desfavorecer e evitar um retrocesso da caminhada da Igreja no continente. O Sínodo reafirma o compromisso com a eclesiologia do Concílio Vaticano II, vale dizer, a Igreja como Povo de Deus, sujeito comunitário e histórico, e como Igreja de Igrejas. Ressalte-se que o Sínodo não apresentou nenhuma novidade quanto a temas, hoje, relevantes e urgentes, necessários e aguardados, como: a ordenação de presbíteros casados; o celibato como opção para os sacerdotes diocesanos; o acesso das mulheres aos ministérios ordenados; a participação do Povo de Deus na eleição dos bispos; um novo perfil de presbítero etc. Essas são questões que ficaram pendentes de respostas. Também há que se reconhecer que o Sínodo não se fechou à possibilidade de seguir aprofundando alguns temas, como: o mundo digital; o clamor dos pobres; a eleição do Bispo e sua função judicial; o papel das nunciaturas; o ecumenismo na práxis eclesial, entre outros). Por isso, o trabalho confiado aos dez Grupos de Estudo, os quais deverão dar uma devolutiva até junho de 2025. Também não se pode deixar de dizer a respeito do questionamento quanto à competência teológico-pastoral desses Grupos que foram conformados pelos Dicastérios, cujos membros que os compõem pertencem a seus quadros. Conforme lembrou o papa Francisco, o DF há que ser colocado em prática na fase de sua realização nos diversos contextos.
Para a Igreja na América Latina e Caribe que tinha feito uma caminhada do avançar, em nível de reflexão teológica e do compromisso pastoral, desde e nos trilhos do Concílio Vaticano II, o Sínodo da Sinodalidade tem significado e sido acolhido a partir de duas interpretações: Primeira - foi importante no sentido de resgatar, assegurar e reafirmar a renovação do Concílio, sobretudo, nesse tempo de retrocesso ou de pressão por um setor da Igreja que é a favor de uma Igreja conservadora e fundamentalista ou da Cristandade. Modelo de Igreja que tenta se impor, apesar do esforço e da ousadia/coragem do Papa Francisco em assumir e aplicar as orientações do Vaticano II.
O Sínodo criticou o clericalismo, a autorreferencialidade, a falta de compromisso ecológico com o Planeta, a necessidade de uma Igreja pobre e do lado dos empobrecidos e excluídos. E quando se trata de retrocesso, a Igreja no Brasil é um exemplo claro disso. Na realidade brasileira e em outros países do continente, a Igreja foi profecia e inculturação, opção pelos pobres e posicionamento sociopastoral exemplar por um amplo setor da Igreja, além de opositora aos regimes autoritários e ditatoriais que torturam, oprimem, exilam e assassinam vidas humanas, sobretudo, as mais vulneráveis.
Contudo, nas últimas décadas, a Igreja retrocedeu muito nessa orientação – o que tem levado a Igreja a viver “entre a insignificância (para as pessoas) e a irrevelevância (para a sociedade)”. Partindo dessa constatação, é possível dizer que o Sínodo foi um avanço ao ir em sentido contrário ao retrocesso. Por isso, pode-se afirmar: a Igreja com o Sínodo da Sinodalidade foi um avanço para a década de 60, o que significa não favorecer o modelo eclesial pré-conciliar.
Quando se analisa o Sínodo numa segunda interpretação, surge a ideia de que o resultado que aparece no DF deixa brecha para seguir avançando de acordo com a tradição da Igreja, a qual é explicitada nos Documentos de Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida. Nas Conferências Episcopais do continente, não deixou de ocorrer a recepção do Vaticano II, mas sempre numa recepção à luz do contexto latino-americano e caribenho de pobreza, injustiça social, opressão, do lugar do pobre na Igreja, da Igreja inculturada e libertadora.
Apesar das dificuldades atuais no atual contexto continental pelo avanço do neopentecostalismo e do neoconservadorismo nas Igrejas cristãs, do avanço político de uma extrema-direita fundamentalista, retrógrada, autoritária e neofascista, do poder das redes sociais em fazer o jogo da política econômica do capitalismo neoliberal que defende o mercado livre, sobretudo livre de intervenções do Estado com programas sociais, isso, em muitas situações, recebe o apoio de um setor do clero mais jovem e de muitos fiéis da Igreja. É possível e imprescindível seguir eclesializando e cristianizando as comunidades cristãs a partir de uma evangelização que aproveita o Sínodo como “ponto de partida”, e não de chegada.
Nesse sentido é que surge a necessidade de resgatar e seguir atualizando e promovendo alguns passos consolidados no Sínodo. Por isso, a seguir, serão apresentados dez passos, entre tantos outros, que parece serem iluminadores e fundamentais para que a Igreja no continente leve em frente a “fase de realização” do Sínodo. Veja: 1) a reafirmação da opção preferencial pelos pobres, e os pobres como anunciadores da salvação; além de serem considerados promotores da evangelização (cf. DF n. 19); 2) as Comunidades eclesiais de base (cf. n. 117); 3) a Igreja como sacramento do Reino, ou seja, a Igreja como “germe e o início” do Reino na Terra (cf. DF n. 20); 4) a Igreja como experiência de ser “pobre com os pobres” (cf. n. 19); 5) a denúncia profética das desigualdades, das tendências autocráticas e ditatoriais, do desencanto com o funcionamento da democracia, do predomínio do modelo de mercado, da vulnerabilidade das pessoas e da Criação, concentração de poder que exclui os pobres, os marginalizados, os direitos das minorias de todos os gêneros, o racismo, a não acolhida dos migrantes (cf. n. 47-48; 54); 6) a preocupação com a Terra, “nossa Casa Comum” e a ecologia integral (cf. n. 48); 7) um povo de Discípulos missionários (DF n. 142; 144); 8) a Doutrina Social da Igreja – DF cita temas como: paz, justiça, cuidado com a Casa Comum, diálogo ecumênico, intercultural e inter-religioso, defesa da vida e dos direitos da pessoa, dignidade do trabalho, economia justa e solidária, ecologia integral (cf. DF n. 23; 151); 9) Uma Igreja toda ministerial – para isso há que compreender o batismo como fonte de todos os ministérios na Igreja. Experiência que favorece a interação dialógica e cooperadora entre todos os pertencentes à Igreja Povo de Deus (cf. n 21-22; 75-77; 87-89); 10) Igreja Sinodal – experiência de Igreja que também se experienciou em várias regiões do Continente; experiência de que se tratou, por exemplo, na Primeira Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe (Cidade do México, de 21 a 28/11/2021) (cf. n. DF n. 28-33).
Agora com base nas orientações oferecidas pelo DF, fica como missão-tarefa da Igreja no Continente latino-americano e caribenho levar adiante os passos assumidos pela Igreja Inteira, visando assumir a missão essencial que é evangelizar (cf. n. 32).
Frei Luiz Augusto de Mattos OSA
Artigo para a coluna Theos, do Jornal Inquietude On-line, de fevereiro de 2025.
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[1] PAPA FRNCISCO XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, Sínodo 2021-2024 Por uma Igreja comunhão, participação, missão - Documento Final, Edições CNBB, Documentos da Igreja - 75
[2] DF (Documento Final)