Concluída a XVI Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, o Documento Final, publicado no dia 26 de outubro de 2024, foi aprovado nos seus 155 pontos e apresenta o fruto de três anos de escuta do povo de Deus, refletindo sobre o tema “Por uma Igreja sinodal: participação, comunhão e missão”.
Ao contrário do que costuma acontecer, o Papa Francisco sinalizou que, desta vez, não pretende escrever uma Exortação Apostólica Pós-sinodal. No entendimento do Papa, no próprio Documento Final há já indicações muito concretas que podem servir de guia para a missão das igrejas nos diversos continentes e contextos. Além disso, o Papa confirmou até junho de 2025 o trabalho dos 10 grupos de estudo sobre alguns temas que necessitam de um especial aprofundamento, tais como as questões ligadas à pobreza, a participação das mulheres na Igreja, a formação dos sacerdotes e o ministério dos bispos.
Um tema importante, e que pode passar despercebido no Documento, é a consideração da Sinodalidade como profecia social. Nos últimos anos, a Igreja tem padecido com o esfriamento da profecia. Na América Latina, um continente marcado pela experiência de um cristianismo profético, essa dimensão inegociável da fé tem perdido espaço e, em certa medida e lugares, tem sido combatida, acusada de ideologia. A tentação, nesse caso, tem sido submeter-se ao “rolo compressor” da ignorância e abandonar de vez a profecia, ou “comprar a briga” pelos mitos messiânicos, confundindo-os como a única e válida profecia.
O teólogo José Comblin disse certa vez que a tarefa do cristianismo é desfazer os mitos, sejam eles quais forem. Tanto a ignorância, que faz abandonar a profecia, quanto a ideologia, que reduz a profecia a um determinado modelo, são mitos e, por isso, não coadunam com a mensagem do Evangelho e com a fé cristã. A ignorância alimenta o mito da alienação; a ideologia alimenta o mito da onipotência. Isso nos obriga, portanto, a descobrir e valorizar as profecias discretas e potentes que povoam os caminhos intermediários, quase sempre, vistos com desconfiança.
Uma dessas profecias, discretas e potentes, é a sinodalidade. No Brasil, como no mundo inteiro, vemos crescer as polarizações e a calcificação de conflitos. Os professores Felipe Nunes e Thomas Traumann, no livro Biografia do Abismo (2024), tomando como referência o ciclo eleitoral de 2022, expuseram como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil. De acordo com a análise desses professores, o embate dos brasileiros após a disputa de 2022 retrata uma cisão maior. Não reflete apenas um modelo político, mas uma estrutura de pensamento. Isso faz com que a polarização extrema transborde para o cotidiano e atinja desde as salas de aula às relações sociais, o consumo, os esportes e a religião.
De acordo com Nunes e Traumann, “a polarização deixa as pessoas cada vez mais radicais em suas visões e menos dispostas a ceder, a buscar acordos e chegar a meios-termos. Ela também conduz a uma falta de respeito e tolerância pela opinião do outro. [...] A democracia depende do diálogo construtivo entre diferentes grupos e indivíduos. Se as pessoas não estão dispostas a ouvir e considerar outros pontos de vista, o diálogo se torna ineficaz, e as decisões políticas passam a ser tomadas de forma unilateral, sem considerar as necessidades e as preocupações de todos os cidadãos, o que, por sua vez, leva a uma erosão da confiança. [...] Muitos dos desafios que enfrentamos hoje exigem soluções complexas e multifacetadas, e encontrá-las é muito mais fácil quando as pessoas estão dispostas a considerar uma variedade de perspectivas e ideias, mesmo aquelas das quais a princípio discordem. A falta de respeito e tolerância dificulta a busca por soluções eficazes. Para fortalecer a democracia, é essencial cultivar uma cultura de diálogo aberto, respeito mútuo e tolerância. Isso envolve ouvir ativamente os outros, considerar diferentes pontos de vista e buscar compromissos que atendam ao bem comum. A promoção desses valores é fundamental para manter uma democracia saudável e funcional” (p. 179-180).
Diante desse quadro, qual o grito profético que a Igreja pode fazer ecoar? Ora, ouvir ativamente os outros, considerar diferentes pontos de vista e buscar compromissos que atendam ao bem comum – esses indicativos elencados como valores fundamentais para manter a democracia são, exatamente, as ferramentas e as metas da sinodalidade. Por esse motivo, ela deve ser abraçada, vivida e reconhecida como profecia social.
Conforme atesta o Documento Final do Sínodo, "praticado com humildade, o estilo sinodal pode fazer da Igreja uma voz profética no mundo de hoje. Vivemos em uma época marcada pelo aumento das desigualdades, pela crescente desilusão com os modelos tradicionais de governança, pelo desencanto com o funcionamento da democracia, pelas crescentes tendências autocráticas e ditatoriais, pelo domínio do modelo de mercado sem levar em conta a vulnerabilidade das pessoas e da criação, e pela tentação de resolver conflitos por meio da força em vez do diálogo. As práticas autênticas de sinodalidade permitem que os cristãos desenvolvam uma cultura capaz de profecia crítica em relação ao pensamento dominante e, portanto, oferecem uma contribuição distinta para a busca de respostas a muitos dos desafios enfrentados pelas sociedades contemporâneas e para a construção do bem comum" (n. 47).
Como reza uma prece Eucarística, “neste mundo dilacerado por discórdias, a Igreja brilhe como sinal profético de unidade e de paz”. E isso pode acontecer por meio da sinodalidade – uma profecia discreta e potente.
Frei Jeferson Felipe Cruz, OSA
Artigo publicado na coluna Theos, do Jornal Inquietude On-line, edição de outubro/novembro de 2024.
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