Na atual civilização – atravessada por grandes crises como a desigualdade e exclusão sociais e a destruição ambiental global, além da falta de utopias e mobilizações alternativas frente às forças fundamentalistas, fascistas e violentas e pela instabilidade mundial devido a impérios que promovem guerras – pode-se perguntar: o que significa ser cristão nesse contexto civilizacional?
Diante da grande utopia do capitalismo – a promoção e a defesa da acumulação de riquezas sem limites – fica difícil e desafiador viver o cristianismo que aponta para a humanização dos seres humanos, para a construção de um mundo menos injusto e a libertação das vidas oprimidas e excluídas. Num mundo onde o sacrifício dos últimos da sociedade se justifica em nome do progresso ou da vida de ostentação e gananciosa da elite mundial, como ser diferente ou alternativo pela libertação? É só num processo de libertação que é possível seguir crendo em sinais de “ressurreição” na história da humanidade.
Essa realidade exige compreender o significado e o sentido do ser cristão. Entendo que a essência do cristianismo não se resume ou se identifica por uma moral elevada, por uma Igreja impecável na sua organização eclesiástica, na formulação de dogmas bem formulados, na experiência de rituais religiosos que encantam ou de práticas religiosas vividas dentro da “rígida” ortodoxia.
Se partirmos de que a essência do cristianismo é simplesmente Jesus de Nazaré, como o Cristo, ser cristão não pode ser outra coisa senão o esforçar-se por orientar-se e praticar Jesus Cristo. E mais: ser diferente, isto é, viver uma forma de vida no caminho do seguimento tem a ver com o viver como Jesus viveu, o que pode tornar Deus presente neste mundo, ou seja, sua vontade manifestada. É o seguimento de Jesus vivido. Seguimento compreendido no esforço e compromisso de viver como Jesus. Isso torna possível conhecer a Deus e fazê-lo presente na atual civilização humana. Para ser cristão exemplar na prática do Evangelho não bastam a fé e a observância da religião com seus ritos e suas normas, por mais que esteja a religiosidade sintonizada com a ortodoxia. O decisivo é o seguimento!
O único gesto que Jesus exige dos discípulos em um primeiro momento é a abertura para o seguimento – “Segue-me” (Jo 21,22). O seguimento d’Ele é o que define, demarca como se vive a relação com Deus. “O mandato do seguimento é o mesmo que inaugurou e marcou a relação de Jesus com os pescadores junto ao Lago da Galileia (Mc 1,18 par.), junto ao publicano Levi e os pecadores (Mc 2,14.15 par.), junto a desconhecidos aspirantes ao discipulado que pretendiam seguir a Jesus e fracassaram (Mt 8,18-22 par.), junto ao jovem rico (Mc 10,17-31 par.), em cujo relato fica evidente que, para ter parte no projeto de Jesus, o Reino de Deus (Mc 1,15), não basta a integridade ética (aquele jovem cumpria a Lei de Deus, os mandamentos do Decálogo). Ou seja, para além disso, a exigência que define a relação de seguimento de Jesus só é possível quando o sujeito se liberta de todas as amarras... que torna impossível a liberdade plena de quem aceita o Evangelho de Jesus com todas as suas consequências.”[1] O seguimento de Jesus é assumido desde uma radicalidade na entrega (Lc 9,23; Mt 16,24), e todos são convidados para essa experiência – não existe exclusão por parte de Deus no chamado para o seguimento, o qual consiste em conhecer Jesus e assumir seu ensinamento e projeto de vida, o que implica estar em um processo de ser livre para se libertar de tudo que impeça viver e fazer a vontade de Deus.
A experiência cristã não se “paralisa” ou se identifica com as boas intenções e as prédicas. Há que viver a ética de Jesus, ou seja, viver uma ética de acordo com a vontade do Deus de Jesus “é a única ética que pode hoje ser aceita e que pode humanizar este mundo tão desumano”[2]. Não é possível ser cristão deixando de assumir uma prática pela humanização e a libertação, sobretudo dos pobres e excluídos. Libertação que é possibilitada quando se segue o Deus da vida e luta-se contra os ídolos que vivem do sangue da grande maioria do povo. Ídolos que se manifestam a partir de poderes, instituições, organizações religiosas e sociais etc. que estão a serviço ou como cúmplices de um Sistema capitalista neoliberal genocida, ecocida e genocida.
O essencial e imprescindível na vida do cristão é o amor incondicional – esse amor é movido pelo princípio da misericórdia. Misericórdia que deve configurar a vida, a missão e o destino de todo cristão. “Esse amor é mais que um sentimento e uma paixão. É uma decisão da liberdade, é um propósito de vida no sentido de abrir-se sempre ao outro, deixá-lo ser, ouvi-lo, acolhê-lo e, se cair, estender-lhe a mão. Esse amor se testa em sua verdade se amarmos os vulneráveis, os desprezados e os invisíveis. É especialmente na nossa relação de acolhida desses condenados da Terra que Jesus pensa quando pede que amemos uns aos outros ou ao próximo. Fazer desse amor a norma da conduta moral implica cobrar do ser humano algo dificílimo e incômodo. É mais viver dentro das leis e prescrições que tudo preveem e determinam. Vive-se enquadrado, mas tranquilo. Jesus veio tirar dessa inércia e despertar o ser humano dessa sesta ética... O Reino se instaura quando houver essa atitude amorosa e absolutamente aberta e acolhedora”[3], promotora e defensora da vida, preferencialmente dos crucificados da história.
Enfim, ser cristão diante da crise civilizacional na qual tudo é mercantilizado, descartado, explorado – inclusive a vida humana e a de todos os seres vivos, com o objetivo de garantir vida ao sistema político-econômico – não é uma tarefa-missão fácil, mas complexa, arriscada e martirial. O seguimento desinstala o cristão de uma vida acomodada, aburguesada, idólatra, e o lança para uma missão de fazer da humanidade mais humanidade, e para o Planeta, uma vida de sustentabilidade a partir da ecologia integral – tudo em nome da utopia do Reino de Deus, onde todos os povos poderão sentar-se à mesa do pão partilhado, da esperança revigorada, da alegria compartilhada e do sonho da “vida em plenitude” (Jo 10,10) realizado.
Frei Luiz Augusto de Mattos, OSA
Artigo para a coluna Theos, do Jornal Inquietude On-line, de junho de 2025.
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[1] José Maria CASTILHO, O evangelho marginalizado. Editora Vozes, 2022, p. 75
[2] Id., A ética de Cristo. Editora Loyola, 2010, p. 35 – O autor afirma: “de acordo como for o Deus no qual se crê, assim será a ética a ser deduzida dessa crença” (p. 34).
[3] Leonardo BOFF, Cristianismo. O mínimo do mínimo. Editora Vozes, 2011, p. 129-130