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set/23

Santo Agostinho e a Palavra de Deus

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O mês de setembro, para a Igreja do Brasil, é muito especial para todas as comunidades eclesiais missionárias. Já é uma tradição que este mês seja lembrado como o “Mês da Bíblia”. Setembro foi escolhido pelos Bispos do Brasil como o Mês da Bíblia em razão da festa de São Jerônimo, celebrada no dia 30. A cada ano, um livro é meditado, rezado e estudado, auxiliando cada cristão a se aproximar da palavra de Deus, “que é viva, eficaz e mais penetrante que qualquer espada de dois gumes. Penetra até dividir alma e espírito, articulações e medulas. Julga os pensamentos e as intenções do coração. Não há criatura que possa ocultar-se diante dela” (Hebreus 4, 12-13).

Santo Agostinho, em sua vida, foi um daqueles que experimentou a força e o sustento da palavra de Deus. Em seu processo de conversão, ele relata em suas Confissões: “O que sei, Senhor, sem sombra de dúvida, é que te amo. Feriste meu coração com tua palavra, e te amei” (Confissões X, 7, 8). Os primeiros encontros de Agostinho com a Escritura em sua infância deram-se pelas leituras ouvidas certamente na igreja ou nas proximidades. Foi após o despertar provocado pelo Hortensius, de Cícero, quando estava com 18 anos, que leu, pela primeira vez, o texto da Escritura, como narra nas Confissões (cf. Confissões III, 5, 9). “Essa leitura, que se reduziu, evidentemente, a uma parte dessa biblioteca que é a Bíblia, não teve resultado positivo, por motivos estilísticos: versado na eloquência clássica, considerou inconveniente o estilo bíblico” (O’Donnell, 2019, p.184). Porém, lendo novamente ao menos alguns textos bíblicos, pouco depois caiu na seita dos maniqueus, com os quais precisou ler e ouvir vários textos conhecidos das Escrituras, mas inseridos num contexto diferente, ao lado dos escritos dos maniqueus. Entre as leituras que esses faziam da Escritura, o que mais afetou Agostinho foi o ataque dos maniqueus ao antropomorfismo e à suposta imoralidade dos patriarcas do Primeiro Testamento.

A partir desse ponto, o relato da conversão de Agostinho é uma narração de sua aproximação progressiva e de sua apreciação cristã sucessiva da Escritura. O estudo da Escritura e de outros textos tornou indefensáveis as posições maniqueias. O ouvir a pregação de Ambrósio e o exemplo de sua leitura silenciosa e atenta da Escritura tornaram possível para Agostinho compreender como uma interpretação plausível da Escritura pudesse estar de acordo com suas raízes socioculturais e as relativas expectativas. Assim, Agostinho apresenta o momento decisivo de sua conversão como um ato de leitura da Escritura e de aplicação literal daquela prescrição moral a si mesmo. Retirou-se em Cassicíaco naquele mesmo inverno, a fim de ler a Escritura (levando em consideração a recomendação de Ambrósio de ler o profeta Isaías), mas os registros daquele inverno são mais de natureza filosófica do que escriturística. Entretanto, nos anos seguintes, antes de sua ordenação em Hipona, sua atenção voltou-se a textos específicos da Escritura - particularmente o Gênesis - para refutar os maniqueus.

Antes de sua ordenação presbiteral, em Hipona, em 391, “escreveu a seu bispo, Valério, a fim de pedir-lhe tempo para dedicar-se ao estudo da Escritura” (O’Donnell, 2019, p.185). Essa referência remete a um processo de formação como autodidata em Escritura, que para nós, enquanto processo, é oculto, mas, enquanto resultado, é ineludível. A partir de seus primeiros escritos como presbítero, sua obra está cheia de referências, ecos e citações da Escritura. Agostinho começa a mostrar fascínio pelos Salmos, que o acompanharão pelo resto de sua vida. Enquanto presbítero, começou a confrontar-se com problemas de interpretação paulina, e é sabido que, “em meados dos anos 90 do IV século, chegou a um ponto em que tal estudo o levou a uma visão completamente nova de Paulo, que influenciará sua teologia pelo resto de sua vida” (O’Donnell, 2019, p.185). Isso não quer dizer que seu interesse pelo Gênesis e pelos Salmos diminuirá. Nos anos seguintes, seu interesse exegético principal direcionar-se-á para a obra de São João, tanto para o Evangelho como para a primeira epístola, que se tornaram objeto de longas discussões, resultando em obras e escritos.

Santo Agostinho é tido até hoje como referência para o estudo da teologia bíblica. Esse talento para a interpretação da Bíblia e para sua sistematização pode ser nitidamente observado em suas diversas obras de comentários bíblicos e em seus numerosos sermões. Uma dessas obras de comentários bíblicos, que também serviu de inspiração para a atuação política de pessoas como Dietrich Bonhoeffer[1] e Martin Luther King Jr.,[2] é a obra Sobre o Sermão do Senhor na Montanha. Nessa obra, Santo Agostinho faz uma explanação do famoso sermão de Jesus Cristo no monte (Evangelho de São Mateus, capítulos 5 a 7), que é considerado por muitos o lugar onde se concentra a primeira exposição da ética cristã. Agostinho considera a Bíblia como a expressão imediata da vontade e da inteligência de Deus. A Escritura não é um livro de história, e sim uma oferta divina que é proporcionada ao homem de fé para revelar-lhe o que Deus lhe pede em cada momento e o que é que tem de fazer para agradá-Lo. É a carta que Deus escreveu aos homens: “Daquela cidade, de onde estamos ausentes como peregrinos, chegaram-nos cartas. São as Escrituras, que nos exortam a viver bem” (Comentários aos salmos 90,2,1). O que faz ao enviar suas cartas é fazer crescer em nós o desejo da pátria, de voltar ao nosso autêntico lar.

A Bíblia nasceu da vontade de o povo ser fiel a Deus e a si mesmo. Nasceu da preocupação de transmitir aos outros e a nós essa fidelidade. A Bíblia é, portanto, humana e divina tanto por sua origem como por seu conteúdo: “É um homem que fala de Deus, Deus o inspira, é verdade, mas não deixava de ser um homem. A inspiração o fez dizer algo. Sem ela, teria emudecido inteiramente. Porque um homem recebeu a inspiração, não disse tudo o que o mistério é, mas o homem pode dizer” (Tratado sobre o Evangelho de São João 1,1).

Ler a Escritura é entrar na intimidade da relação de Deus com um povo que nos deixou por escrito o que temos de fazer para que nossa vida seja continuamente conectada com Ele. “Agostinho fez da Escritura o alimento de sua vida cotidiana, e foi capaz de distribuí-la também como pão ao seu povo” (SIERRA RUBIO, 2003, p.8). Como nos ensina o Concílio Vaticano II, “[...] é tão grande a força e a virtude da palavra de Deus que se torna o apoio vigoroso da Igreja, solidez da fé para os filhos da Igreja, alimento da alma, fonte pura e perene de vida espiritual” (DV 21).

Frei Caio Filipe de Lima Pereira, OSA

-Texto publicado na coluna Theos do Jornal Inquietude On-line, de setembro de 2023.


REFERÊNCIAS

[1] Cf. BONHOEFFER, Dietrich. Ética. 7 ed. São Leopoldo: Ed. Sinodal, 2005.

[2] Clayborne Carson (org.). A autobiografia de Martin Luther King. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2014, p. 88-89. Tradução: Carlos Alberto Medeiros.

AGOSTINHO, Santo. Comentário ao Evangelho e ao Apocalipse de São João. Tomo 1. São Paulo: Cultor de Livros, 2017.

AGOSTINHO, Santo. Comentário aos Salmos: salmos 51-100. Vol. 9/2. São Paulo: Paulus, 2014.

AGOSTINHO, Santo. Confissões. 17.ed. Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 2004.

BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB. 3.ed. Brasília: Edições CNBB, 2019.

BONHOEFFER, Dietrich. Ética. 7 ed. São Leopoldo: Ed. Sinodal, 2005.

CLAYBORNE, Carson (org.). A Autobiografia de Martin Luther King. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2014, p. 88-89. Tradução: Carlos Alberto Medeiros.

CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática Dei Verbum. In: Documentos do Concílio Vaticano II: constituições, decretos, declarações. Petrópolis: Vozes, 1966.

O’DONNELL, James J. Bíblia. In: FITZGERALD, Allan D, OSA (org.). Agostinho através dos tempos: uma enciclopédia. São Paulo: Paulus, 2018. p.183-186.

SIERRA RUBIO, Santiago, OSA. A Bíblia: O Manjar de Deus. Col. Cadernos de Espiritualidade Agostiniana (7), FABRA. São Paulo, 2003.

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