Na sociedade em que nos encontramos, a injustiça é um dos sinais da falta de amor e de solidariedade. Por muitas vezes, esquecemos que o próximo é o espaço geográfico onde devemos exercer o amor de Deus pela humanidade. É por essa razão que Jesus Cristo se encarnou e se fez homem no meio de nós. Por não levarmos isso em consideração, temos, como resultado, o abandono das necessidades humanas expresso na pobreza social que caracteriza a realidade contemporânea.
Mas quem são os pobres? Essa pergunta sempre foi importante dentro da reflexão sobre a caridade cristã. Santo Agostinho não se furtou a isso também. No sermão 107, ele questiona: “Quem é o verdadeiro pobre, o pobre que se abandona a Deus? Quem é o verdadeiro órfão, o órfão de quem o Senhor é o amparo?”. A partir dessa reflexão, ele busca motivações para a sua presença junto aos irmãos, principalmente, os mais feridos pelas faltas materiais que marcam os seres humanos.
Dentro desse contexto da “falta” acarretada pela pobreza material que fere a dignidade do ser humano, Agostinho de Hipona delimita, também, outro aspecto da pobreza: aquele que ultrapassa a questão dos bens materiais e faz com que as atitudes humanas sejam excludentes diante da existência dos irmãos.
“Há pobres que não possuem recursos. Eles mal encontram o alimento de cada dia e precisam tanto da assistência e da compaixão do próximo. Se é desses que se fala quando é dito: ‘É a vós que se abandona o pobre’, o que faremos nós, nós que não somos desses? Cristãos que somos, não nos abandonamos a Deus? Que esperança podemos ter se não nos abandonarmos Àquele que não nos abandona? Aprendam, então, a ser pobres e a se abandonarem a Deus, ó, meus irmãos!” (Santo Agostinho in Sermão 107, 2)
Prestem atenção: Agostinho reconhece que a questão da falta material urge e precede qualquer outra reflexão com respeito à pobreza. Porém, ele pede que sejamos capazes de nos aprofundarmos no sentido da pobreza em outra direção. A pobreza deve ser uma experiência vivida não materialmente (porque isso é sinal de injustiça social), mas espiritualmente (de forma livre e decidida) nas relações com Deus. Somente diante de Deus devemos ser pobres. Pois, dessa forma, todas as nossas capacidades são postas, humildemente, diante de quem pode potencializar a nossa existência humana. Fazer-se pobre, em Deus, requer um trabalho interno de reconhecimento das nossas limitações diante da grandeza divina. E, dessa forma, o maior exemplo a ser seguido é do próprio Cristo Jesus.
“Que pobreza! Ele nasceu em um abrigo minúsculo. Foi envolvido em fraldas infantis e colocado em uma manjedoura, transformando-se, assim, como que em alimento para pobres animais. Depois, esse Senhor do Céu e da Terra, esse Criador dos anjos, esse Autor de tudo o que é visível e invisível toma o seio, chora, alimenta-se, cresce, sofre as variações das idades, esconde sua majestade. Depois é preso, desprezado, flagelado, zombado, cuspido, chicoteado, coroado de espinhos, pendurado em um pedaço de madeira, perfurado por uma lança. Que pobreza! Aí está o Líder dos pobres que eu procurava! Aí está o Pobre do qual vemos que todo verdadeiro pobre é membro!” (Santo Agostinho in Sermão 107, 9)
É na pobreza de Cristo que nos vemos como seres humanos. Sendo a manifestação de Deus, Jesus se reconhece potente e capaz de todas as coisas, inclusive, de abrir mão dessa para atender à demanda da humanidade, que é o amor, a misericórdia, o acolhimento e a reparação. Ele se faz pequeno para reerguer o pequeno. Ele se faz presente para trazer ao centro das relações os que se encontram à margem. Eis a grandeza de Jesus: faz-se um pobre para atender aos pobres. Ele não depaupera o problema da pobreza social, mas reafirma a necessidade de aproximação aos mais necessitados. Assim, ele recupera a crença da possibilidade de mudança, pessoal e social, posta no gênero humano.
Aprendemos, com essa reflexão de Santo Agostinho, que a pobreza é uma realidade social e que deve ser combatida. Mas existe uma forma específica de combatê-la: a partir do reconhecimento da nossa própria pobreza como seres humanos. Deus é a fonte da riqueza e a motivação para toda a modificação social. Reconhece-se pobre para atender aos pobres. Eis o desafio que nos aproxima da encarnação de Cristo. Ao mesmo tempo, aproxima-nos deste espaço geográfico destinado ao nosso amor, que é o próximo.
Frei Arthur Vianna Ferreira, OSA
- Artigo publicado na coluna Fala Agostinho, do Jornal Inquietude On-line, edição de janeiro de 2024.