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02
fev/21

O IDEAL DA FRATERNIDADE: UMA LEITURA AGOSTINIANA DA ENCÍCLICA FRATELLI TUTTI

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*Frei Jeferson Felipe Cruz

A recente encíclica do Papa Francisco convida ao dom da fraternidade: o reconhecimento de que somos todos irmãos e irmãs. Trata-se de uma encíclica social oferecida à humanidade “como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras” (n. 6).

Essa insistência na fraternidade não é privilégio do Francisco de Roma. Antes já foi pregada e vivida por Francisco de Assis e, para bem da verdade, sempre foi a insistência e a exigência concreta da pregação cristã, afinal, como disse Jesus: “todos vós sois irmãos” (Mt 23, 8). Por se tratar, então, de um patrimônio cristão, propomos aqui uma leitura agostiniana da proposta “todos irmãos”.

A primazia do amor; a valorização da comunidade; e a solidariedade como serviço da fé, são os aspectos que gostaríamos de destacar nessa proposta de leitura agostiniana da encíclica. São aspectos caros ao pensamento e à espiritualidade de Santo Agostinho que se destacam, também, no texto do Papa.

1 - Primazia do Amor: No início de sua Regra, Santo Agostinho deixa claro que os principais preceitos que recebemos foram o amor a Deus e ao próximo (cf. Regra I, 1). Esses preceitos, recebidos do Senhor, estão na base do ideal da fraternidade universal, porque eles nos fazem “honrar a Deus uns nos outros” (Regra I, 9). São as duas faces de uma mesma moeda (cf. 1Jo 4, 20-21). Esse amor, contudo, não se limita ou confunde com mero sentimento. Na lógica cristã, o amor é sempre decisão. É verbo mais do que substantivo. Corresponde a dar a vida, gastar energia em favor dos outros. Justamente por isso, o amor aos irmãos deve ser um amor político. Afinal, como lembra o Papa, “reconhecer todo o ser humano como um irmão ou uma irmã e procurar uma amizade social que integre a todos não são meras utopias. Exigem a decisão e a capacidade de encontrar os percursos eficazes, que assegurem a sua real possibilidade. Todo e qualquer esforço nesta linha torna-se um exercício alto da caridade. Com efeito, um indivíduo pode ajudar uma pessoa necessitada, mas, quando se une a outros para gerar processos sociais de fraternidade e justiça para todos, entra no ‘campo da caridade mais ampla, a caridade política’.” (n. 180). Esse amor político pressupõe a valorização da comunidade.

2 - Valorização da comunidade: Na espiritualidade agostiniana, a comunidade figura como um valor inegociável. Ela é, ao mesmo tempo, o meio e o fim pelo qual se congregam os agostinianos. Como o amor, a comunidade também não é uma mera categoria intelectual ou utópica. Ela se realiza na concretude do pôr tudo em comum e na distribuição a cada um conforme a necessidade (Regra, I, 4). Inspirada e movida pela Caridade, a comunidade exige que “ninguém trabalhe em nada para si mesmo, mas que todos os trabalhos se realizem para o bem de todos, com maior cuidado e prontidão de ânimo como se cada um o fizesse para si mesmo” (Regra V, 31). Ela se torna, inclusive, o termômetro da perfeição (cf. Regra V, 31). A vivência da comunidade, então, descortina o horizonte da solidariedade como destacado serviço da fé.

3 - Solidariedade como serviço da fé: Na esteira da compreensão bíblica, a perspectiva agostiniana entende que a fé cristã consiste em conformar a própria vida à vida de Jesus, reconhecendo nele o Mestre interior que plasma em nós sua imagem e nos faz alcançar a estatura de seus sentimentos (cf. Fl 2, 5). Para Santo Agostinho a garantia de que nossa fé nos faz partícipes do Reino é justamente esta: “seremos reino de Deus se, crendo n’Ele, progredimos n’Ele” (Sermão 57, 5). Ora, progredir em Cristo significa adotar como destacado serviço a solidariedade. Um serviço que é, em grande parte, cuidar da fragilidade, e que pode assumir formas muito variadas: “significa cuidar dos frágeis das nossas famílias, da nossa sociedade, do nosso povo. Nesta tarefa, cada um é capaz ‘de pôr de lado as suas exigências, expetativas, desejos de onipotência, à vista concreta dos mais frágeis.” (n. 115). Mas o serviço da solidariedade deve, também, expressar muito mais do que alguns gestos de generosidade esporádicos. Ele exige pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. Exige também lutar contra as causas estruturais da pobreza, da desigualdade, da falta de trabalho, de terra e de casa; da negação dos direitos sociais e laborais.” (n. 116). E, na urgência de nosso tempo, deve se estender, inclusive, à casa comum, que é o planeta. “Quando falamos em cuidar da casa comum fazemos apelo àquele mínimo de consciência universal e de preocupação pelo cuidado mútuo que ainda possa existir nas pessoas. De facto, se alguém tem água de sobra mas poupa-a pensando na humanidade, é porque atingiu um nível moral que lhe permite transcender-se a si mesmo e ao seu grupo de pertença. Isto é maravilhosamente humano!” (n. 117).

Esses três aspectos concordes à espiritualidade agostiniana e à encíclica colocam-se, pois, como verdadeiras provocações. A Trindade de amor, derrame entre nós o rio do amor fraterno para reconhecermos Cristo em cada ser humano, para O vermos crucificado nas angústias dos abandonados e dos esquecidos deste mundo e ressuscitado em cada irmão que se levanta.

Frei Jeferson Felipe Gomes da Silva Cruz
Secretário Provincial
Pároco da Paróquia Santa Cruz, de Chapada do Norte (MG)

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