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mai/20

O Espírito e Cristo no comentário ao quarto Evangelho e no tratado Trinitário de Santo Agostinho

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O ESPÍRITO E CRISTO NO COMENTÁRIO AO QUARTO EVANGELHO E NO TRATADO TRINITÁRIO DE SANTO AGOSTINHO.[1]

O texto do Evangelho:

“Soprou sobre eles e disse: recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22).

  1.       A explicação no Tratado sobre o Evangelho de João.

            O último texto do Evangelho de João no qual se menciona o Espírito Santo descreve a realização de sua doação por Jesus ressuscitado aos discípulos. A revelação acontece no contexto da aparição do Senhor aos seus discípulos na tarde da Páscoa. Depois de lhes dar a paz, de haver mostrado os sinais da paixão no seu corpo glorioso, e conferir a eles a continuidade da missão recebida do Pai, Jesus concede o dom do Espírito Santo com o ato simbólico do sopro.

            No comentário evangélico, Agostinho cita ou faz alusão a esta cena seis vezes, em diferentes momentos, desenvolvendo uma extensa exegese sobre esse texto. Ele o comenta, por exemplo, no seguinte ponto:

“ ‘Soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo’ (20,22). Soprando quer significar que o Espírito Santo é, não somente do Pai, mas também seu. ‘A quem perdoardes os pecados eles serão perdoados, a quem o retiveres eles serão retidos’ (20,23). A caridade, que por meio do Espírito Santo é derramada em nosso coração, perdoa os pecados daqueles que fazem parte da comunidade eclesial; e retém, ao contrário, o pecado de quem não faz parte. É por isso que Jesus concede o poder de perdoar ou de reter o pecado só depois de haver dito: ‘Recebei o Espírito Santo’.” (Tractatus 121, 4).

            Para o exegeta, são dois os elementos que se destacam. O primeiro diz respeito ao Espírito em si, em seu relacionamento com Deus; o sopro de Jesus mostra que o Espírito Santo pertence não só ao Pai mas também ao Filho, e aqui aparece claramente a dignidade divina de Jesus. O outro elemento diz respeito ao Espírito em relação aos homens. Sendo a caridade divina, dele provém a remissão dos pecados.

“Porque, não cremos que o Espírito Santo procede também do Filho já que é o Espírito também do Filho? Se de fato não procedesse também do Filho, Cristo não poderia, depois da ressurreição, doar aos seus discípulos seu sopro dizendo: ‘Recebei o Espírito Santo’ (20, 22). Que outro significado pode ter este sopro se não que o Espírito Santo procede também dele?” (Tractatus 99,6).

            A situação pessoal do Espírito com o Filho aparece ao longo da exposição do último discurso de Jesus sobre o Paráclito. A relação do Espírito com o Filho vem aqui contemplada, especificada e explicitada com a palavra “procede” que contém, para o intérprete teólogo, a ideia de origem. O gesto do sopro é, para Agostinho, uma demonstração muito clara da derivação pessoal intradivina do Espírito do Filho. 

interpretação acrescenta um novo argumento ao que o Autor disse sobre o tema da processão[2] do Espírito também do Pai.

            O texto ainda aparece no desenvolvimento do comentário ao primeiro dos discursos sobre o Paráclito. O intérprete está explicando que o Espírito pode ser doado em diferente medida; uma primeira vez para quem ainda não o recebeu e, em seguida, sempre com maior abundância, a quem já está enriquecido com sua presença e ação.  

“Não uma vez, mas duas vezes o Senhor concedeu aos apóstolos, de modo manifesto, o dom do Espírito Santo. [...] Talvez esse dom tenha sido concedido duas vezes porque duplo é o preceito do amor: o amor a Deus e ao próximo; e para enfatizar que o amor depende do Espírito Santo” (Tractatus, 74, 2).

            As duas grandes efusões do Espírito (cf. Jo 20, 22. At 2, 1-11) simbolizando o duplo preceito do amor reafirma e evidencia a ligação causal do Espírito com relação à caridade para com Deus e para com o próximo. A mesma ideia da dupla doação do Espírito da parte de Jesus, uma depois da ressurreição e outra depois da ascensão ao céu, vem exposta comentando a explicação do evangelista à profecia de Jesus proclamada na festa dos tabernáculos (cf. Jo 7). Relatamos o trecho da exegese no qual aparece o referido texto.

“Depois da sua ressurreição, na primeira vez que aparece a seus discípulos, Jesus diz a eles: ‘Recebei o Espírito Santo’ (20, 22). Porque como bem disse o evangelista: ‘Ainda não tinha sido dado o Espírito por que Jesus ainda não tinha sido glorificado’ (Jo 7, 39). E soprou sobre eles. Ele com seu sopro animou os membros do corpo; mostrando com esse gesto que queria criá-los do pó da terra e libertá-los das obras da terra. Foi então depois da sua ressurreição, chamada pelo evangelista de glorificação, que o Senhor doou pela primeira vez aos seus discípulos o Espírito Santo” (Tractatus, 32, 6).

            A este trecho exegético segue a evocação da narrativa de Pentecostes em Atos 2, 1-11. O paralelismo explicitado pelo exegeta entre o ato do sopro divino sobre o primeiro homem para chamá-lo do pó da terra à vida natural, e o ato do sopro de Jesus sobre seus discípulos para ressuscitá-los à nova vida, mostra a profunda intenção reveladora da Escritura, em cujo texto joanino é voluntariamente alusiva àquela do Gênesis. Todos os comentadores modernos ao explicar a narrativa da doação do Espírito no dia da ressurreição, recordam o relato da formação do primeiro homem. A exegese contemporânea segue a mesma linha daquela antiga, proposta por Agostinho.

            No comentário evangélico há outras duas alusões à narrativa pascal da efusão do Espírito. Uma destaca, como feito da presença do Espírito, a infusão de uma disposição e apreço pela as realidades divinas nos discípulos (cf. Tractatus 103, 1). A outra é, simplesmente, um breve compendio que serve como introdução à pesca milagrosa (cf. Tractatus 122, 2).

            A exegese de Agostinho sobre Jo 20, 22 - texto que é denominado “o pentecostes joanino”, oferece um rico ensinamento pneumatológico. Na doação do Espírito por Cristo ressuscitado vem revelada a processão de origem do Espírito do Filho e vem revelada a 

relação do Espírito com o homem crente, para o qual é a fonte da caridade para com Deus e para com o próximo. É a fonte da caridade que concede o perdão dos pecados. Sopro do Senhor ressuscitado sobre o homem morto por causa do pecado, o Espírito Santo os anima da vida divina, como o sopro criador de Deus tinha dado ao primeiro homem a vida natural.

  1.       A explicação do “De Trinitate”.

            O texto pneumatológico final do Evangelho de João vem explicitamente citado duas vezes no tratado “De Trinitate” e em ambas as vezes vem interpretado como uma revelação da procedência do Espírito Santo também do Filho.

            Para o fim do quarto livro do Tratado o Autor coloca o tema da missão do Espírito ensinando que, sendo enviado no tempo para a salvação do homem, revela e manifesta a relação eterna entre as pessoas divinas. O Espírito procede do Pai e do Filho.

“Não podemos dizer que o Espírito Santo não proceda também do Filho. Não à toa o mesmo Espírito Santo é chamado Espírito do Pai e do Filho. Não vejo o que mais quereria dizer Cristo quando soprando sobre os discípulos disse: ‘Recebei o Espírito Santo’ (20, 22), porque aquele sopro corpóreo, que procede do corpo como uma sensação de contato físico não era a substância do Espírito Santo, mas a representação, através de um símbolo adequado, que o Espírito Santo não procede só do Pai, mas também do Filho. Quem será tão insensato de afirmar que um é o Espírito que Cristo deu com seu sopro e outro o que mandou depois de sua ascensão? Um único Espírito, de fato, é o Espírito de Deus. Espírito do Pai e do Filho, o Espírito Santo” (De Trinitate 4, 20, 29).

            Aqui também a doação do Espírito através do sopro de Jesus é a acoplada à efusão do dia de Pentecostes. A historicidade salvífica destes dois atos é, para o exegeta, o reflexo temporal da ontologia divina eterna.

            A última parte do livro décimo quinto do Tratado é dedicada ao aprofundamento final do conceito da processão divina. Depois de haver adotado o texto bíblico tirado de São Paulo e dos Sinóticos, que indicam a pertença e relatividade do Espírito Santo ao Pai e o Filho, o Autor propõe a processão do Espírito do Filho comentando o ato do sopro do Ressuscitado.

“Que procede de ambos nos ensina os seguintes passos: o Filho mesmo disse que o Espírito ‘procede do Pai’ (Jo 15, 26); e ressuscitado dos mortos, aparecendo aos discípulos, soprou e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’ (Jo 20,22) para mostrar que o Espírito procede também dele. O Espírito Santo é, ainda, a ‘força que saiu dele e curou a todos’ (Lc 6,19)”. (De Trinitate 15, 16, 45).

            Do quarto ao décimo quinto livro do Tratado, a partir dos quais essas referidas exegeses são tomadas, a interpretação de Jo 20, 22 continua a mesma: o Espírito procede do Filho porque foi enviado por Ele; de modo que podemos estabelecer uma equivalência na hermenêutica de nosso Autor: pelo Espírito ser soprado é procedente; proceder é receber a comunicação do ser e da vida divina em igualdade de natureza e de dignidade.

            No tratado “De Trinitate” aparece ainda uma alusão a Jo 20, 22 sem citação explicita, na segunda parte do livro décimo terceiro, onde se ensina que o Cristo conduz os homens à verdadeira beatitude mediante a obra da redenção. Aqui, Agostinho acena o dom do Espírito Santo como sendo primeiro prometido e depois concedido.

            A comparação entre o modo de explicar, no comentário evangélico e no tratado trinitário, os dois últimos textos joaninos quem contêm o termo “Espírito” não revela diferença, se não pelo fato de que a exposição global no comentário é mais extensa que no tratado teológico. Nas duas obras, pela expressão “deu o Espírito”, o exegeta dá como significado, a morte natural de Jesus e sua libertação e voluntária determinação; pela expressão “soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” dá como significado a processão eterna do Espírito também do Filho e a relação da promessa anunciada na festa dos tabernáculos.

            Ao comentar esta última expressão, no comentário evangélico, Agostinho propõe o paralelismo com o sopro divino na criação do homem, que deu ao primeiro homem a vida natural, assim, o sopro do Espírito de Jesus adquire o valor de uma nova criação, de comunicação da vida espiritual, da vida imortal, da vida divina.

            Esta identidade de exegese é sinal indubitável, tanto da unidade do pensamento do Autor, como também da singular afinidade entre essas duas grandes obras que são fruto da plena maturidade do pensamento e da teologia do Bispo de Hipona.

 

Comentário do Tradutor

            Para bem entender estes traços da peumatologia agostiniana, tão bem apresentados por Giuseppe Ferraro, é preciso considerar o marco histórico no qual Agostinho escreveu suas obras. O tema do Espírito Santo, em sua época, estava envolvido na malha de polêmicas. Sobretudo atingido por heresias. Quando, ao comentar os textos bíblicos, Agostinho defende a procedência do Espírito tanto do Pai quanto do Filho (Filioque), está claramente defendendo a fé católica aprovada no I Concílio de Constantinopla (381).

            Para nós, a pneumatologia agostiniana pode assegurar, além desta defesa clara e distinta de nossa doutrina, um profundo caminho de vivência da fé, especialmente pelos seguintes aspectos:

  •          O Espírito é amor. Manifesta-se de duas maneiras diferentes, justamente, porque duplo é o mandamento do amor. Possui o Espírito quem ama, a Deus e ao próximo.
  •          O Espírito ao ser soprado dota os discípulos de uma missão temporal: a caridade, que opera no perdão e na reconciliação.
  •          O Espírito Santo procede também do Filho, porque é seu próprio Espírito. Ao soprá-lo sobre nós, Cristo nos comunica sua vida. Faz-nos renascer. A conclusão é fática: se o Espírito dele habita em nós, devemos, então, viver como Ele viveu.

 

 

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[1] Esta é a tradução livre de uma parte da obra Lo Spirito e Cristo nel comento al Quarto Vangelo e nel Trattato Trinitario di Sant’Agostino, de Giuseppe Ferraro lançada em 1997 pela Libreria Editrice Vaticana. Tradutor: Fr. Jeferson Felipe Gomes da Silva Cruz, OSA.

[2] Relativo à procedência, ao que procede. “O Filho provém do Pai, e o Espírito Santo provém de ambos, no mistério da Santíssima Trindade”.

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