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06
mar/23

O Brasil alimenta o mundo, e quem alimenta o Brasil?

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Diante dos dados aferidos e publicados pelas pesquisas do IBGE, IPEA e, especialmente, os da Rede PENSSAN, muita gente insiste em dizer que eles não merecem crédito; que os institutos de pesquisa não são independentes e que seus resultados não correspondem à realidade, visto que existem indivíduos que não conseguem encontrar no seu dia a dia essas 33 milhões de pessoas famintas. Que, por conta da ausência de contato empírico com essa realidade de precarização e fome, esses dados devem, por certo, ser fraudados.

Tal raciocínio está presente sobretudo nas camadas sociais mais abastardas, uma vez que a geografia dessa camada não permite o contato com a realidade vivenciada pela maioria da população brasileira. Josué de Castro, em sua obra ‘Geografia da Fome’, já nos apontava para a importância de se ter a geografia como um instrumental para averiguar a realidade. Dessa feita, ao estudar a fome, faz-se necessário um deslocamento, inicialmente de vontade, para, a partir de então, acessar o território onde ela se manifesta.

No entanto, a acusação não é suficiente nela mesma. Questionar uma realidade ou coisa que não está posta diante daquele que questiona não é prova de que a coisa ou realidade interrogada não exista. Ou seja, questionar a existência dos povos Ianomamis e/ou a sua situação de fragilidade por nunca ter visto um Ianomami e a sua realidade não é prova de que esses povos não existam. Esse mesmo argumento serve para a estatística. Nunca ter respondido a uma pesquisa estatística não é garantia de que ela seja falsa. Não que essa ciência seja infalível, mas a sua crítica está posta em outro nível de dúvida, como a metodologia, o instrumental, o critério, dentre outros.

Isso posto, faz-se necessário entender como e por que chegamos a essa realidade tão estarrecedora de fome e insegurança alimentar.

Em 2013, o país possuía 944 toneladas de arroz estocados e, em 2015, esse número ultrapassou a marca de 1 milhão de toneladas. Já em 2020, nossos estoques caíram para 22 toneladas (o que não garantia nem uma semana de consumo no país). De 2020 para 2022, a situação piorou, pois nesse período o país deixou de ter estoques governamentais de alimentos para contingência, ou para intervir no mercado. Em 2019, a então gestão do governo fechou mais de 27 armazéns da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Vale ressaltar, ainda, que essa companhia estava na mira da privatização.

O que queremos dizer com essas informações é que a política empregada nos últimos anos era uma política marcada pelo interesse privado, pelo lucro e pouco interesse no bem público e no bem-estar das pessoas de nossa nação. A Conab é uma empresa nacional de suma importância para a população brasileira, já que ela é quem gerencia os estoques reguladores de alimentos do nosso país. Esses estoques são essenciais para uma eventual calamidade ambiental que possa comprometer a produção de alimentos, ou ainda para regular os preços dos alimentos dentro do nosso território. Ou seja, ela é importante para tornar o alimento acessível a um preço justo, o que não foi bem o que aconteceu nos últimos anos.

Se essa companhia é tão importante para a soberania alimentar de nosso país, em que nos beneficiaríamos caso ela fosse privatizada, como planejado por Paulo Guedes? Numa empresa privada, o que impera não é a preocupação em garantir o alimento a um custo baixo, tornando-o acessível à população mais pobre do nosso país, mas, sim, o lucro. Os interesses são inteiramente opostos.

O fechamento dos armazéns supracitados, bem como a redução dos estoques de alimentos ao longo dos anos, acena para o desmonte dessa empresa, visando ao benefício de companhias privadas que, com o desmantelamento da Conab e, por conseguinte, da sua capacidade de controlar os preços dos alimentos, lucraram muito com as repetidas altas desses produtos de primeira necessidade.

Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Brasil é o terceiro maior produtor de alimentos no mundo (se considerarmos a produção de grãos e proteína animal). No entanto, temos mais de 33 milhões de pessoas passando fome em nosso país. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) publicou um estudo em 2021 com o título “O Agro Brasileiro alimenta 800 milhões de pessoas”. O que esse estudo não diz é que a metodologia usada consiste numa lógica de “regra de três”, onde as constantes são: população mundial, produção brasileira e produção global. Ou seja, a conclusão da Embrapa é que, se o Brasil é responsável pela produção de 10% de alimentos do mundo, logo, ele alimenta 10% da população mundial.

Daqui podemos desdobrar vários problemas desse estudo e da sentença de que o Brasil alimenta o mundo. O primeiro problema de cunho metodológico está no fato de que o estudo não considerou fatores como desperdício na cadeia produtiva, desigualdades de consumo e os dados sobre a insegurança alimentar.

O segundo problema é de cunho político e econômico, visto que a deliberação de se alimentar o resto do mundo condena o povo brasileiro a passar fome (essa escolha é compartilhada pelo interesse privado e pelas políticas públicas e econômicas). As cadeias produtivas estão ligadas internacionalmente, portanto, a produção de alimentos do agronegócio brasileiro não é destinada à alimentação do nosso povo, mas à exportação e lucro (que por consequência alimenta outros povos, sobretudo animais). Falamos de destinação, mas podemos afirmar ainda que o seu fim não é esse, o seu fim é a maximização dos lucros, e o agronegócio o faz por meio da produção de alimentos, que podem ou não alimentar seres humanos, ou animais. Porém isso não é relevante, o que importa nesse negócio não é a soberania alimentar da nossa nação, ou a de outra qualquer, mas apenas os benefícios privados que essa atividade promove.

O Brasil possui 125,2 milhões de pessoas convivendo com a insegurança alimentar. Ou seja, mais da metade da população brasileira convive com a insuficiência nutricional, enquanto o agronegócio brasileiro lucra com a exportação de alimentos para outros povos. Resta-nos então a pergunta: quem alimenta o Brasil?

Segundo o IBGE, 70% dos alimentos consumidos no país vêm da agricultura familiar. Isto é, são pequenos agricultores que plantam para abastecer sua família e comercializam aquilo que sobra da colheita. A agricultura familiar é constituída de pequenos produtores rurais, povos e comunidades tradicionais, assentados da reforma agrária, silvicultores, agricultores, extrativistas e pescadores.

Desse modo, o agronegócio brasileiro não necessariamente alimenta tanta gente no mundo quanto propagandeia, menos ainda a própria população. Ainda assim, ele é o que mais se beneficia das políticas governamentais. O Plano Safra de 2022 a 2023, aprovado no governo anterior, prevê um orçamento de mais de 340 bilhões de reais, dos quais, apenas 53,61 bilhões serão destinados para o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), ou seja, pouco mais do que 15% dos recursos disponíveis, o restante será destinado ao agronegócio.

Assim, a fome no Brasil não é uma realidade oriunda da carestia, ou de um desastre natural, mas exclusivamente de uma opção política e de uma agenda econômica. A opção política foi dada pela incapacidade de gestão da inflação nos últimos anos, o que consumiu parte significativa da renda da população; bem como da política monetária adotada, que promoveu uma desvalorização do real, resultando em maior impacto nos preços do mercado interno, uma vez que o aumento dos preços internacionais gera o aumento dos preços dentro do país.

Tudo isso poderia ter sido amenizado caso houvesse geração de emprego, o que resultaria na melhoria da renda; numa política de reajuste do salário mínimo acima da inflação; em programas como o Bolsa Família; mecanismos regulatórios, como os estoques públicos de alimentos e outras políticas públicas voltadas à segurança alimentar.

A opção econômica é intuitiva, num país que vem sendo colocado cada vez mais na posição de uma economia primária exportadora. Quanto mais lucrativa for essas commodities (soja, milho, cana-de-açúcar, carne, etc.), mais a pressão sobre o uso da terra aumentará, visto que o seu objetivo é a maximização dos lucros, pois essas commodities competem diretamente com a produção de alimentos para o consumo interno, sobrando menos espaço para o arroz, feijão, mandioca, dentre outros. Sem contar ainda que isso gera uma pressão nos preços da produção, distribuição e comercialização dos alimentos.

Como a política institucional de nosso país é controlada historicamente pelo grande latifúndio, essa concorrência do agronegócio com a agricultura familiar – que se dá tanto no orçamento, vide a distribuição do plano safra, quanto nos territórios – é bastante desigual. E impacta diretamente a vida de toda a população nacional, já que o resultado dessa disputa afeta a disponibilidade de alimentos, o seu preço, sobretudo a qualidade deles, visto que a monocultura de commodities do agronegócio exige o uso de um sem-fim de agrotóxicos.

Poderíamos discorrer ainda sobre muitos outros fatores que agravaram a situação de nossa população. Nosso objetivo aqui era apresentar apenas alguns desses agravantes, sobretudo aqueles que se disfarçam discursivamente como virtuosos, que é o caso do nosso agronegócio. Apresentar outros mais nos exigiria um maior espaço. No entanto, nada nos impede de retomar a essas causas em outro momento e promover essa reflexão para além do tempo quaresmal. No próximo texto, atentaremos para instituições de políticas públicas e iniciativas privadas que podem nos ajudar a superar de algum modo essa trágica realidade. Fontes: Companhia Nacional de Abastecimento (Conab); Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF); Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE); O Joio e o Trigo; Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf); Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO); Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

Frei Paulo Henrique Cintra, OSA
Comissão de Justiça e Paz e Cuidado com a Criação

* Publicação na coluna Pé no Chão do Jornal Inquietude On-line, em fevereiro de 2023.

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