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19
dez/24

Natal: “o mundo tornou a começar (?)”

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Guimarães Rosa (1908 – 1967), no clássico “Grande Sertão: Veredas”, descreve o nascimento de uma criança quase parafraseando o nascimento do menino-Deus. O nascituro sertanejo compartilha com o recém-nascido de Belém a mesma origem empobrecida: aquele nasceu em um rancho miserável, no meio de “um povoado só de papudos e pernósticos”; este nasceu em um estábulo, velado por animais, no perímetro de uma vila pequena e insignificante. Ao nascimento do menino, em Belém, os anjos cantaram “glória a Deus nas alturas”; ao passo que, no nascimento do menino do Grande Sertão, Riobaldo grita que o “mundo tornou a começar”. Também nisso, os nascimentos se encontram, porque a glória de Deus se reflete em suas obras (cf. Sl 19, 1). E, se o mundo torna a começar, a glória de Deus faz-se ver, outra vez.

Por mais luzes, enfeites e maquiagens que tenhamos colocado ao longo dos séculos, o Natal – tal como crido pelos cristãos – não deixa de ser um absurdo. Nada sufoca o escândalo de um menino, filho de mãe solteira, adotado, nascendo como migrante, reclinado numa manjedoura. Isso é o cúmulo do mundano. E o absurdo da fé cristã é proclamar que esse menino, nascido nessas condições, é o Filho de Deus. Ora, se isso é verdade e se é verdade, também, o que disse Riobaldo, no nascimento desse menino-Deus, o “mundo tornou a começar”, de que forma? Em que sentido?

Consideremos o seguinte: na encarnação, o Criador assume a condição de suas criaturas; o Eterno entra no tempo; o Senhor se faz criança. Isso, no mínimo, sugere uma inversão da lógica habitual; isso desfaz a cadeia de separação entre realidades sagradas e profanas; isso envolve tudo em santidade. E é assim que o “mundo tornou a começar”.

O filósofo francês-lituano, Emmanuel Levinas (1906-1995), na obra Do Sagrado ao Santo, comentando textos do Talmude judaico, sinaliza uma pertinente distinção entre a sacralidade e a santidade. Para ele, o sagrado, está relacionado ao mistério, ao inacessível, à experiência ritual e inspira admiração e temor. O santo, por sua vez, é o contrário disso e se relaciona com a ética, a responsabilidade e o compromisso com o outro; representa a proximidade e a capacidade de se comprometer com o bem. De acordo com o seu raciocínio, para que a santidade atue no mundo, este precisa ser dessacralizado. “E a verdadeira dessacralização deveria tentar separar positivamente o verdadeiro da aparência, talvez até separar o verdadeiro da aparência essencialmente misturada com ele”.[1]            

Ao proclamar que o Verbo se fez carne, armando sua tenda entre nós, o cristianismo defende a possibilidade de que o mundo seja santificado e que Deus não habita mais a esfera distante do sagrado. No Deus-conosco, o mundo tornou a começar. Pelo mistério da Encarnação, a potência de vida, pertencente à santidade, passou a habitar o mundo e as realidade divinas já não são exclusivamente sagradas, mas, porque são santas, se esparramam, santificando tudo.

Essa diferenciação entre o sagrado e o santo mostra-se extremamente atual e necessária. Temos visto crescer um espectro de cristianismo performático, muito afeito à sacralidade e à exterioridade; um cristianismo ritual, desprovido de responsabilidade.

Uma vivência religiosa majoritariamente estética, em detrimento de uma prática cristã ética que, realmente, conforme a vida do crente à do seu Senhor. Um cristianismo muito sagrado e pouco santo.

No Brasil, por exemplo, cresce o número de igrejas evangélicas associadas ao tráfico – criando o escandaloso “narcopentecostalismo”; em âmbito católico, aumenta o número de grupos e associações que se regem por um espiritualismo conservador que beira à alienação. Por trás do slogan sagrado de não se envolver com questões “mundanas”, muitas pessoas religiosas gestam um estilo de vida que está longe da santidade. Muito apegados à pauta moral, desprezam e subestimam as exigências éticas da fé e do anúncio cristão que, como lembrou o Papa Francisco, “possui um conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparece a vida comunitária e o compromisso com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio tem uma repercussão ética imediata, cujo centro é a caridade” (EG, 117).

Em nome do sagrado, os crentes se distanciam das realidades concretas da vida sem saber que, com isso, acabam se distanciando do Santo. Afinal, como disse Santo Agostinho, “enquanto o homem quer ser deus, Deus quis ser homem para encontrar o que estava perdido” (cf. Sermão 188).

Talvez seja esse o maior ensinamento do Natal: a superação do sagrado para o real encontro com o Santo; o distanciamento de uma vida regida pelas epidérmicas práticas sagradas e a adoção de uma vida em santidade. Porque somente assim, em justiça e santidade, será possível o mundo tornar a começar.

Frei Jeferson Felipe Gomes da Silva Cruz, OSA

Artigo publicado na coluna Theos, do Jornal Inquietude On-line, edição de dezembro de 2024.

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[1] LEVINAS, Emmanuel. Do Sagrado ao Santo: cinco novas interpretações talmúdicas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 98.

Imagem: https://pt.vecteezy.com

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