No Primeiro Domingo do Advento, iniciando o novo ano litúrgico, a Igreja no Brasil passará a utilizar a Terceira Edição Típica do Missal Romano. A recepção da nova tradução e edição dos textos para a celebração da Eucaristia causou diversas reações. Os ditos “conservadores” vibraram com a inclusão da expressão “santas e veneráveis mãos”, durante a narrativa da consagração. Já entre os ditos “progressistas” essa mesma inclusão ocasionou ferrenhas críticas. Fato é que os elogios ou críticas, oriundos dessas perspectivas superficiais e rubricistas, comprometem o mais importante: a consciência litúrgica frutuosa que a nova edição pode proporcionar, ao favorecer uma ortopráxis sempre mais adequada aos feitos de Cristo e à fé da Igreja. Aproveitando a circunstância da nova Edição Típica do Missal, gostaríamos de propor neste artigo uma brevíssima reflexão sobre a interrelação da lex orandi com a lex credendi e a lex agendi (a lei da oração, a lei da fé e a lei do agir).
O famoso adágio lex orandi - lex credendi foi formulado por Próspero de Aquitânia (séc. V), no contexto da polêmica semipelagiana. Próspero trocou cartas com Santo Agostinho e recebeu dele duas de suas obras: o De predestinatione sanctorum (A predestinação dos santos) e o De dono perseverantiae (O dom da perseverança). Embora tenha sido formulado num contexto muito particular, aquele do semipelagianismo, o adágio foi ganhando espaço na Teologia e, com isso, significado ampliado. O próprio Santo Agostinho o utilizou diversas vezes e em diversas formulações. Um exemplo pode ser encontrado em uma carta de Agostinho contra Pelágio dirigida ao Papa Inocêncio I. Argumentando em favor da necessidade da graça, o bispo de Hipona parte da oração litúrgica e, referindo-se ao pedido do Pai-nosso “não nos deixeis cair em tentação”, escreve: “A própria oração é um testemunho claríssimo da graça” (Ep. 177, 4). Fazendo ver que a oração indica aquilo em que se crê.
Santo Agostinho, no entanto, não é o primeiro a assumir a oração da Igreja como critério de fé. Nesse ponto ele é devedor de outro Padre da Igreja: Cipriano de Cartago (séc. III). Para Cipriano, por exemplo, o Pai Nosso é norma para a vida cristã. Se o Senhor ensinou a invocar o Pai como Pai nosso (e não: meu), “quis que um orasse pelo outro, como ele próprio nos conduziu todos à unidade” (De oratione Dominica, 8). Nesse caso, a expressão lex orandi se refere à obrigação de orarmos uns pelos outros, de pensarmos nos outros, quando oramos. Posteriormente, explicando o “de cada dia” do “pão nosso”, Cipriano fala do desapego dos bens, da ajuda aos pobres e acrescenta: “Para que cada um de nós se possa preparar para isso, aprenda a orar assim e a conhecer, pela lei da oração, como deva ser” (De oratione Dominica, 20). Para Cipriano, então, a lei da oração é critério de ortopráxis.
Essa compreensão mais aprofundada do antigo axioma de Próspero permite-nos resgatar a indispensável e necessária articulação entre a oração, a fé e o agir na vida cristã.
Conforme lembra Francisco Taborda, “a vida cristã apresenta três momentos que lhe são intrínsecos: liturgia – fé – ética (compreendendo sob esta última a prática da vida cristã de cada dia). Se não se leva em consideração a interdependência dos três momentos, não se esclarecem as relações entre quaisquer dos outros dois componentes da tríade. Assim como na Trindade, não se podem considerar as relações entre duas pessoas sem levar a sério a terceira, ou seja, sem considerar as duas pessoas em questão na perspectiva intratrinitária total, assim também oração – fé – agir são três aspectos da existência cristã tão fundamentalmente unidos que toda reflexão sobre a relação entre dois sem o terceiro é inadequada”.[1]
Articulando esses aspectos, a Liturgia/oração deixa de ser mera vivência estética e passa a ser experiência e encarnação do mistério; a fé deixa de ser mero conhecimento ou curiosidade intelectual, passando a ser entrega a Deus no seguimento discipular de Jesus; e tanto a oração quanto a fé alimentam e desembocam num agir concreto e coerente com o que se crê e o que se reza.
O adágio clássico foi formulado, como vimos, no contexto da polêmica semipelagiana. O Papa Francisco, ao longo de seu pontificado, tem insistido contra o perigo do “mundanismo espiritual” (cf. Evangelii Gaudium, n. 93-97) e tem denunciado o neopelagianismo como uma ideologia que alimenta esse mundanismo. Como antídoto para esse mal, o Papa propõe justamente a redescoberta e a valorização da Liturgia “não como um cerimonial decorativo ou um mero conjunto de leis e preceitos que regulam o cumprimento dos ritos” (cf. Mediator Dei), mas como a “primeira e indispensável fonte da qual os fiéis poderão beber o espírito verdadeiramente cristão (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 14).
Na Carta Apostólica Desiderio Desideravi (2022), o Pontífice afirma que: “se o neopelagianismo nos intoxica com a presunção de uma salvação ganha com as nossas forças, a celebração litúrgica purifica-nos proclamando a gratuidade do dom da salvação acolhida na fé. Participar no sacrifício eucarístico não é uma conquista nossa como se disso nos pudéssemos gloriar perante Deus e os irmãos. O início de cada celebração recorda-me quem sou, pedindo-me para confessar o meu pecado e convidando-me a suplicar à bem-aventurada Virgem Maria, aos anjos e santos e a todos os irmãos e irmãs que roguem por mim ao Senhor: porque não somos dignos de entrar na sua casa, precisamos de uma palavra sua para sermos salvos (cf. Mt 8, 8). Não temos outra glória a não ser a cruz de nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Gl 6, 14). A Liturgia não tem nada a ver com um moralismo ascético: é o dom da Páscoa do Senhor que, acolhido com docilidade, faz nova a nossa vida. Não se entra no Cenáculo a não ser pela força de atração do seu desejo de comer a Páscoa conosco” (Desiderio Desideravi, n. 20).
Aprofundando esse aspecto, já que a lex orandi está vinculada com a lex credendi e conduz à lex agendi, consideremos uma das “novidades” da Terceira Edição Típica do Missal: os convites para a Aclamação Memorial. A terceira opção proposta é: “Mistério da fé para a salvação do mundo!”, a que a comunidade responde: “Salvador do mundo, salvai-nos, vós que nos libertastes pela cruz e ressurreição”. Ora, se o Mistério da fé, celebrado e presentificado na Liturgia, é para salvação do mundo, isso significa que nós cremos na salvação universal e não na salvação de um grupo escolhido ou predestinado; cremos que o amor de Deus é oferecido a todos e todas sem distinção. Qual é, portanto, a consequência prática, dessa crença na universalidade da salvação rezada na Liturgia? Acolhermos todos e todas na mesa do Senhor; agir de tal forma que a Igreja seja uma casa de portas abertas.
Na recente Jornada Mundial da Juventude, o Papa insistiu nesse aspecto. “A Igreja é o lugar para todos... Todos, todos, todos!”. O que significa reafirmar que há espaço para todos na Igreja? Reconhecer que “ninguém é inútil, ninguém é supérfluo, há espaço para todos. Assim como somos, todos”. Porque “Deus nos ama, Deus nos ama como somos, não como gostaríamos de ser ou como a sociedade gostaria que fôssemos: como somos. Ele nos ama com os defeitos que temos, com as limitações que temos e com o desejo que temos de seguir em frente na vida”.[2]
Oxalá a recepção da nova Edição Típica do Missal Romano seja oportunidade para aprofundar as derivações práticas da fé e da oração, ajudando nossas comunidades a vincular esses três aspectos indispensáveis na vida cristã: orandi, credendi, agendi (orar, crer e agir).
Frei Jeferson Felipe Cruz, OSA
[1] TABORDA, Francisco. Lex orandi, lex credendi: origem, sentido e implicações de um axioma teológico. In: Perspectiva Teológica, 35, (2003), p. 71-86.
[2] PAPA FRANCISCO. Discurso na Cerimônia de Acolhimento JMJ Lisboa 2023, 3 agosto de 2023.