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31
mar/23

Há futuro no horizonte?

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Nos últimos dois textos, refletimos sobre a realidade da fome e as suas causas. Resta-nos, então, buscar alternativas para remediar esse grave quadro que nos acomete enquanto nação. Nos últimos anos, tem se multiplicado o número de autores que pesquisam e escrevem sobre o modo de produção capitalista e os seus impactos no curto, médio e longo prazo. Como sabemos, no modo de produção atual, há a ideia de que tudo é mercadoria e, portanto, precisa gravitar em torno do seu objetivo maior que é a geração de lucros. Esse raciocínio é tão potente que nos faz, enquanto sociedade, projetar um futuro no qual a vida humana seja comprometida em vez de elucubrar um outro modo de ser no mundo.

Quer dizer, é mais fácil pensar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, em especial o seu modo de produção e distribuição. Essa ideia é bem trabalhada por Mark Fisher em sua obra Realismo Capitalista. O realismo de Fischer descreve a atitude fatalista perante o capitalismo como inevitável. Ou seja, parte de uma ideia de que as coisas são como são e, por isso, não há o que mudar visto que essa realidade é um “dado da natureza”.

Desse modo, o capitalismo capturou o público de tal forma que a ideia de uma outra realidade não é levada a sério como uma possibilidade real. E toda e qualquer manifestação contrária a essa realidade acaba, no fim, reforçando o modo de produção capitalista. A falta de alternativas coerentes, como apresentado pelas lentes do Realismo Capitalista, induz vários movimentos de resistência ao status quo a deixar a visão do fim do capitalismo de lado e, em vez de disso, mitigar seus piores efeitos, muitas vezes por meio de atividades individuais baseadas no consumo. Ou seja, o realismo descrito por Fischer pode até admitir movimentos contrários ao modo de produção atual, mas, desde que não se projete uma outra forma de ser no mundo, que as manifestações sejam individuais (ou ainda um aglomerado de pessoas agindo individualmente) e postas de tal forma como uma solução para o problema em questão.

Ao que parece, as práticas individuais não são suficientes para transformar a nossa realidade. Assim, para superar as contradições de nossa sociedade, como produzir mais alimentos que podemos consumir e ainda assim termos milhões de pessoas passando fome em nosso País e no mundo, é preciso propor uma reflexão coletiva. Ou seja, não há saída individual para os problemas sociais. Logo, toda e qualquer alternativa para minimizar os problemas sociais passa por uma organização e luta social.

Portanto, é preciso se coletivizar e ler a realidade na qual estamos inseridos. Só assim teremos reais condições de superar o Realismo Capitalista de Fischer, ao admitir que é possível uma alternativa de forma de vida em nossa sociedade. E que, para tanto, não é por meio de práticas capitalistas (leia-se consumo) que se irromperá uma nova realidade. Não quero dizer com isso que práticas individuais e de consumo não sejam importantes; elas carregam uma pequena parcela de relevância, mas em sua devida proporção.

O consumo, ou o consumo consciente, está muito associado aos movimentos considerados como alternativos em nossa sociedade, como a ideia de desenvolvimento sustentável. No entanto, ambas correspondem ao que entendemos como oxímoro, ou seja, carregam em si sentidos opostos. Há, portanto, uma contradição interna do próprio conceito. Propor uma ruptura pelo consumo é atacar o problema a partir dos efeitos e não da causa.

Em suma, a ideia de que é preciso consumir de forma consciente (consumir produtos sustentáveis, orgânicos, consumir menos) e diminuir a pegada de carbono para salvar o planeta ou conduzir o modo de produção para um modo sustentável é falha. Além disso, não se considera que isso não produz uma mudança no modo de produção, mas sim a criação de um novo mercado para aqueles que têm condições de escolher o que consumir. Em outras palavras, atacar o problema pelo consumo (pela aparência) só produz mais mercado, reforçando ainda mais a sua concepção fatalista.  

Se tais práticas fossem de fato uma alternativa real ao que está posto, o Brasil seria um modelo de alternativa, visto que mais de 60 milhões de pessoas vivem com uma renda inferior a R$ 500,00. Ou seja, tais pessoas teriam um impacto gigantesco na economia brasileira, não necessariamente por seu “mérito moral” oriundo de suas escolhas de consumo, mas sim por não serem capaz de consumir.

Um importante economista austríaco radicado no Brasil, chamado Paul Singer, defendeu ao longo de sua vida um modelo de economia solidária. No entanto, Singer tinha clareza de que a economia solidária não é uma alternativa em si, mas sim um remédio de curto prazo. A economia solidária convive com o modo de produção e de distribuição vigente, desde que este tenha o apoio da maioria da população.

Considerar uma mudança apenas por meio de iniciativas privadas e individuais serve mais para aplacar uma necessidade de expiação de uma culpa introjetada nos indivíduos por um discurso que aponta os consumidores como a causa de todos esses problemas.

De outro modo, apostar ainda que a solução do problema da miséria, da precarização do trabalho e da fome está ancorada em políticas públicas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) ou nos estoques reguladores da CONAB ou em programas sociais, como o Fome Zero, é o mesmo que ancorar as esperanças de mudança por iniciativa individual a partir do consumo. Tais políticas públicas garantem uma transferência de renda, possibilitando às camadas mais pobres a capacidade de consumir e afiançando a sua sobrevivência. Não obstante, enquanto persistir a ideia de que tudo é mercadoria, inclusive os alimentos (commodities), a fome continuará a ser perpetuada no mundo. Tais políticas públicas são extremamente necessárias para impedir que as pessoas morram de fome, mas não são suficientes.

Potencializar as políticas de transferência de renda, estimular a economia solidária, consumir de pequenos e médios produtores, potencializar iniciativas coletivas que visam se opor ao modo de produção capitalista, como cooperativas ou como movimentos populares (MST, MTST, etc.), são formas de amenizar o peso do modo de produção vigente em nossas vidas. Trata-se de um protesto contra a miséria, um suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma.

Destarte, urge a necessidade de nos organizarmos coletivamente para tomarmos consciência da magnitude da jaula que nos aprisiona. Não apenas isso, a organização nos garante que enquanto estivermos mobilizados, estejamos vivos, com um mínimo de dignidade. Somente assim seremos capazes de construir um mundo novo.

Não haverá mundo novo sem povo! A fome é a limitação da capacidade de viver, é a morte! Ela nos ronda como um leão pronto para nos devorar (1Pe 5). Por isso a ordem de Jesus: “Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14,16). Alimentados, vivos, poderemos enquanto comunidade fazer irromper em nosso meio um mundo novo, um novo céu e uma nova terra (Ap 21,1). O Reino de Deus, onde toda criatura poderá gozar de uma vida plena (Jo 10,10).

Frei Paulo Henrique Cintra, OSA
Comissão de Justiça e Paz e Cuidado com a Criação

* Publicação na coluna Pé no Chão do Jornal Inquietude On-line, em março de 2023.

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