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09
nov/22

Fé, tradição e resistência: 200 anos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Chapada do Norte

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A cidade de Chapada do Norte, no Vale do Jequitinhonha/MG, tem seus primeiros registros de povoamento no século XVIII, quando escravos africanos e seus descendentes que eram fugidos buscavam a região como refúgio. Em 1728 chegaram os bandeirantes paulistas à procura de ouro – um grupo liderado por Sebastião Leme do Prado. A exploração do ouro acontecia principalmente nas margens do rio Capivari por mão de obra escrava. De início, no sítio Paiol do Santo Cruzeiro, onde atualmente é a sede da cidade.

A referência municipal e política nesse período era a cidade de Minas Novas, de onde normalmente esses escravos fugiam indo para a região chapadense. Nesse contexto, surge a freguesia de Santa Cruz de Chapada do Norte, dependente da capitania da Bahia e posteriormente de Minas Gerais, que somente em 1963 é emancipada.

Durante esses três séculos de história, diversas mudanças aconteceram: os escravos foram libertos, o ouro praticamente acabou, os bandeirantes foram embora, comunidades quilombolas remanescentes cresceram e se estruturaram. Religiosamente surgiram a devoção e o imaginário popular, as religiosas do Convento das Lágrimas, a Irmandade do Santíssimo Sacramento e a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que têm seus registros oficiais de 1822.

1. CONJUNTURA HISTÓRICO-SOCIAL

Os festejos da Virgem do Rosário surgem quando uma imagem de Nossa Senhora é encontrada em um córrego por homens brancos que de lá a retiram e a levam para a igreja, porém, misteriosamente, a imagem volta ao seu lugar de origem. Pela segunda vez a buscam, mas novamente a Santa retorna ao córrego. Nisso, um grupo de homens pretos se dispõem a buscar a imagem. Com seus tambores e cantos a levam e a colocam no local onde hoje há uma capela dedicada a ela. A imagem permaneceu e, desde então, os negros encontraram um segundo refúgio em Chapada: Nossa Senhora do Rosário!

A imagem aparece aos chapadenses em um contexto em que índios, mestiços e negros eram escravizados e explorados; desvalorizados, sofriam a  distinção entre brancos e negros, reforçando o preconceito racial. A Irmandade do Santíssimo Sacramento, que organizava a Festa do Divino, era formada por brancos e ricos.

Os pobres conquistaram seu espaço quando fundaram a Irmandade do Rosário, oficialmente em 1822, porém, antes mesmo de um decreto oficial, já se realizavam celebrações e festividades com batuques para a Santa.

A Festa do Rosário conserva atenciosamente os costumes e elementos que lhe foram dados nesses duzentos anos, principalmente os de origem africana, como o congado, o tambor, a lavagem da igreja, a cachaça, o angu e os doces. E também traços europeus, como o levantar o mastro a cavalo, que encena a batalha entre cristãos e mouros. Desses diversos símbolos há dois a que damos destaque, os tambores - se estão tocando, é porque estão louvando Nossa Senhora; e o litro de cachaça na cabeça das mulheres - enquanto o litro está de pé, a festa está de pé, está acontecendo, é preciso se alegrar.

Os costumes do passado se tornam presentes em Chapada do Norte com seus festejos principais: Festa do Divino, Santa Cruz e Nossa Senhora do Rosário. Manter a tradição é uma maneira de não esquecer o passado sofrido de tantos que passaram por essa terra e deixaram suas marcas de diferentes maneiras. O passado em Chapada é sagrado, conta Geni, rainha do congado de Nossa Senhora do Rosário. “Sempre esperamos pela Festa de Nossa Senhora do Rosário. E a Festa do Rosário não é só no mês de outubro, é o ano inteiro!”

2. CELEBRAR É ATUALIZAR E VIVER

Nas festividades do Rosário, o mito, o rito e o sincretismo se fazem presentes. Isso é necessário para atualizar o passado e vivê-lo no presente.

O grupo do Congado de Nossa Senhora do Rosário surge inicialmente nas comunidades rurais, mais fortemente no Córrego da Misericórdia, onde os trabalhadores, quando encontravam uma flor de parreira, ficavam alegres e dançavam à noite, “30, 50 homens na roça cortavam o dia inteirinho e brincava a noite, e foi assim que fundou a comunidade” (FOGAÇA, 2017, p. 132).

O batuque para a dança é feito com diversos instrumentos, viola, tambor, triângulo, pandeiro e sanfona. Há relatos de que, em algumas comunidades rurais, quando não havia instrumentos, o batuque era feito nas portas e o povo animado dançava.

No congado, é responsabilidade da rainha guiar o grupo com o canto e a dança. Com o estandarte de Nossa Senhora do Rosário, ela puxa o grupo e inicia o louvor à Santa. Comenta Geni, sobre ser a rainha do congado: “Eu tenho muita alegria de ser a rainha do congado, Deus tem me confiado de estar aqui junto com vocês, e espero que Nossa Senhora do Rosário confie em mim mais tempo para que façamos esta festa bonita que sempre esperamos”.

Complementando o congado, há os tambozeiros de Nossa Senhora do Rosário, que com seus tambores buscam especificamente louvar a Santa. Há o capitão do tambor, que precisa ter a voz mais alta, pois é dele a responsabilidade de puxar as cantigas no grupo, responsável também por organizar e preparar o grupo para viver bem as festividades.

            Durante toda a festa há uma culinária enriquecida. O angu de farinha de milho é servido ao povo na casa da rainha, na quinta-feira. Há diversos doces que antecipadamente são preparados para servirem durante a festa, seja o doce de mamão, fava, laranja-da-terra e batata. Quando se aproxima o mês de outubro, começam as doações dos alimentos necessários para o doce, juntamente com o serviço de muitas mulheres e homens, a busca por lenha, água, açúcar, leite, entre outros, com os ritos próprios para a preparação de cada doce.

Cada detalhe dessa festa é relevante e deve ser seguido firmemente, como sinal de respeito à tradição do povo chapadense, em memória de Nossa Senhora do Rosário e em honra da festa principal da cidade.

3. 200 ANOS DE FÉ, TRADIÇÃO E RESISTÊNCIA.

Conservar em duzentos anos as características primitivas da festa e da Irmandade do Rosário, não é fácil, porém, o povo chapadense conseguiu devido a três características: fé, tradição e resistência.

É pela fé que todos os anos se levanta o mastro de Nossa Senhora a cavalo, encenando a batalha entre cristãos e mouros, e depois da batalha, pelo auxílio de Maria, os cristãos firmam sua fé, firmam o mastro e vencem a batalha. É pela fé que todos os anos se busca a imagem de Nossa Senhora do Rosário nas margens do córrego em que ela apareceu, apesar de muitas vezes o córrego estar praticamente seco, os fiéis recordam com estima esse momento fazendo novamente o trajeto que há mais de duzentos anos os negros fizeram.

É pela tradição que se lava a igreja de Nossa Senhora do Rosário, com todo cuidado e zelo, os seus devotos preparam sua casa, deixam-na limpa e bela para suas celebrações, como diz o canto popular regional: “Senhora do Rosário, sua casa cheira, cheira cravo de rosa, olê, olê, flor de laranjeira”. Pela tradição se faz alvoradas anunciando o tempo da Santa, toca-se o meio-dia da festa para todo o povo saber que a cidade celebra sua festividade maior. Preparam-se doces para servir ao povo e, assim, servirem melhor à Virgem do Rosário, como nos recorda outro canto: “Viva, viva a quem serve, tão voluntário, a Virgem Santa Mãe do Rosário”; os doces trazem alegria àqueles que os experimentam.

É pela resistência que se tocam os tambores, instrumento primordialmente africano, louvando, no estilo próprio dos Pretos, a Mãe de Deus e o próprio Deus. E quando não se há tambores, os pés, as mãos e as portas são o batuque, mas não se deixa de festejar Maria. Em resistência, preparam o angu, alimento primordial dos negros de antigamente, seguindo todo o rito de como preparar, mexer e observar o angu, para servi-lo na quinta-feira juntamente com alguns vegetais ou carne. O que poderia ser uma alimentação antiquada aos olhos de hoje é preparado com todo esmero, recordando os tempos do passado em que o angu era a única refeição do dia de muitos negros. Levanta-se um litro de cachaça na cabeça, mostrando que, mesmo muitos querendo silenciar a voz e a expressão do povo preto, a festa precisa continuar, o litro não pode cair.

Pela resistência se há o rei e a rainha do Rosário, para mostrar que se, outrora, a monarquia era lugar da elite, na Irmandade, ao menos uma vez na vida, se é rei ou rainha da festa. Como nos relata Andreia, festeira do bicentenário, “Estou muito feliz em poder realizar a festa, celebrá-la, depois de um tempo de pandemia de muito sofrimento, dá uma alegria muito grande. A Irmandade, nesses duzentos anos, me deixa uma mensagem de amor, de fé, companheirismo e solidariedade” (SOARES, Andreia, entrevista concedida a José Ricardo no dia 7 de setembro de 2022 em Chapada do Norte-MG). Atualmente a Irmandade não é composta apenas por negros, mas por pessoas devotas que desejam fazer parte dela, sejam elas negras, sejam brancas ou pardas, o que torna a festa um lugar de acolhida e de representação de toda a população municipal.

Celebrar 200 anos de festa com seus costumes originários preservados é mostrar que a história permanece viva. Mostrar que a raça negra, apesar de tantos empecilhos, preconceitos e exploração, continua firme na sua história. Viva e fiel ao seu refúgio e proteção nessas terras, à Virgem do Rosário, a rosa mimosa da Chapada que, entre as outras flores, é a mais formosa, como nos relata um dos cânticos dedicados à Santa.

Chapada do Norte de tantas histórias, estórias, mitos, ritos, religiões e sincretismos. “Chapada do Norte é Macondo” (VIEIRA; MAGALHÃES; DIAS, 2014, p. 26), de Gabriel García Márquez, com todo o seu movimento, pessoas e contos que deixam a ficção cinematográfica e literária com inveja. Celebrar duzentos anos da fundação tão nobre da Irmandade do Rosário é celebrar também a nobreza do povo chapadense, que, apesar do preconceito, da migração e da seca, sabe sorrir, festejar e valorizar o que é seu, amar sua cultura. Então, viva a fé, a tradição e a resistência, viva a quem serve!

 

José Ricardo Duarte

REFERÊNCIAS

FROGAÇA, Sérgio. Quilombos do Vale do Jequitinhonha música e memória. Nota musical comunicação, São Paulo, 2017.

INSTITUTO ESTADUAL DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE MINAS GERAIS. Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Chapada do Norte. Belo Horizonte: imprensa oficial, 2013.

INSTITUTO ESTADUAL DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE MINAS GERAIS. Dossiê de Registro da Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Chapada do Norte/MG. Belo Horizonte: imprensa oficial, 2013.

SOARES, Andreia, entrevista concedida a José Ricardo no dia 7 de setembro de 2022 em Chapada do Norte-MG.

SOARES, Geni. Entrevista concedida a José Ricardo no dia 25 de setembro de 2022 em Chapada do Norte-MG.

VIEIRA, Elisa; HEYDER, Magalhães; DIAS Luciana (orgs). Imagens e Memórias. Faculdade de Letras, Belo Horizonte, 2014.

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