Os tempos em que vivemos são iguais a todos os outros: cheios de desafios e conflitos. Não devemos cair no embrolho de achar que os tempos passados são melhores que os atuais. Desde Santo Agostinho, sabemos que essa é uma reclamação constante na vida dos seres humanos. Ou seja, sempre achamos que os tempos passados são melhores que os tempos atuais. Essa fantasia pode nos atrapalhar a viver o tempo presente e dificultar a nossa vivência como pessoas que podem contribuir para um mundo melhor e mais solidário.
Contudo, de uma coisa não podemos nos esquivar: defender os princípios nos quais acreditamos e regularmos a nossa vida. Isso não significa iniciarmos um belicoso combate contra tudo e todos. Ao contrário, defender as nossas crenças passa por certa tranquilidade, e parcimônia racional, pois nossa energia afetiva e emocional está investida em lugares, e pessoas, que podem nos ajudar a desenvolver o melhor que temos dentro de cada um de nós.
Por isso, em seus sermões, Santo Agostinho insiste no estudo da Sagrada Escritura como um dos investimentos pessoais para a dissolução de eventuais polêmicas e problemas da vida. Faz-se mister reconhecer que a aproximação à palavra não traz para nós certezas que muitas vezes esperamos. Ao contrário, ela instaura mais questionamentos e dúvidas que devem ser dirimidas a partir de nossa crença e de nossa esperança em algo maior: Deus.
“Voltemo-nos com um coração puro para o Senhor nosso Deus, Pai onipotente. Prestemos a Ele imensas e abundantes ações de graça. Que Ele condescenda também, com sua força, afastar de nossas ações e nossos pensamentos a influência inimiga, multiplicar em nós a fé, dirigir nosso espírito, nos dar pensamentos espirituais e nos conduzir à Sua própria felicidade.” (Santo Agostinho in Sermão 01, 5, 3) Um coração puro é o princípio para que possamos ler e compreender a Palavra de Deus, tendo, assim, a capacidade de entender o contexto em que ela foi escrita e a destreza para interpretá-la segundo os espíritos dos tempos atuais.
Assim, não podemos nos deixar enganar nos estudos que realizamos sobre a Sagrada Escritura. As atitudes de Jesus Cristo, e sua forma de pensar o mundo, devem ser a nossa chave de leitura. Ou seja, seguir o Cristo, que se faz sensível às necessidades humanas, amoroso com os que sofrem e criterioso – e perspicaz – com aqueles que o questionam, nos oferece uma diretriz basal que nos afasta dos possíveis erros que os nossos sentimentos e vontades pessoais possam incidir sobre as leituras realizadas a partir da Palavra de Deus.
“Trata-se aqui que de Cristo não se diz nada de falso, Ele não se engana e nada de falso sairá de Sua boca e, já que Ele não mente, pesquisemos que sentido dar ao Evangelho que estudamos e evitemos invocar uma autoridade celeste para cavar o abismo da mentira.” (Santo Agostinho in Sermão 133, 5, 1) Esse é o cuidado que devemos ter para que não nos deixemos enganar por interpretações, principalmente dadas por outras pessoas, que não nos ajudam, nem em nosso crescimento espiritual nem no fortalecimento da defesa dos nossos princípios enquanto cristãos.
Esse é o convite que nos é feito para assumirmos o nosso compromisso diante da forma com a qual nós estudamos, proclamamos e vivemos a Palavra de Deus. Não devemos vivê-la pelo simples fato de que um religioso, ou um padre, ou um líder carismático nos indicou como deveríamos fazer. A Palavra de Deus só faz sentido se fizer sentido na nossa vida. Dessa forma, assumir com liberdade, porém com retidão, aquilo que se escuta de Deus através de sua Palavra é o maior desafio que nos motiva a seguir no aprofundamento como cristãos.
“Não desprezem, portanto, os últimos dentre vocês. Defendam e velem com todo o cuidado possível pela Palavra de Deus para a salvação dos membros de suas famílias. Assim, vocês doarão; assim, vocês não serão servidores preguiçosos e não terão que temer a horrível condenação.” (Santo Agostinho in Sermão 94, 1, 3) Essa é a motivação para aqueles que se debruçam sobre a Palavra de Deus: defender a nossa fé. Essa defesa não está expressa na quantidade de palavras que usamos para convencer o outro. Mas na capacidade de vivermos aquilo que lemos e, a partir dos movimentos silenciosos da nossa própria vida, darmos testemunho de que somos pessoas que entenderam o real motivo pelo qual a Palavra de Deus se fez carne e habitou no meio de nós como Filho para nos fazermos seus herdeiros espirituais.
Frei Arthur Vianna Ferreira, OSA
Artigo publicado na coluna Fala Agostinho, do Jornal Inquietude On-line, edição de setembro de 2024.
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