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05
abr/24

Cristianismo e política: relação possível ou absurda?

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No início deste ano, a proposta de abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Municipal de São Paulo/SP para investigar organizações não governamentais (ONGs) ganhou repercussão nacional, sobretudo, por destacar entre os possíveis investigados o Pe. Júlio Lancellotti, Vigário Episcopal para a Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo.

A proposta da CPI, obviamente, compõe um complexo e maquinado repertório que envolve desde motivações econômicas e religiosas a motivações políticas, haja vista que 2024 é ano eleitoral nos municípios. A proposta, sobretudo por tocar a figura de um religioso, também repõe sobre a mesa a pauta da relação entre religião e política, ou, mais especificamente, sobre o caráter político e social da religião cristã.

A relação entre cristianismo e política é legítima? É possível, ou absurda? O que a Teologia pode dizer sobre isso?

Antes de tratar especificamente da possível relação entre religião cristã e política, é importante salientar que a vida e a mensagem de Jesus não são diretamente ligadas ao poder. Para o bem da verdade, Jesus superou, inclusive, a tentação de um messianismo político caracterizado pelo domínio sobre as nações (Mt 4, 8-11; Lc 4, 5-8) e manteve-se autônomo e independente dos partidos políticos, não assumindo compromissos com nenhum projeto de governo ou ideologia.

Embora encontremos no Novo Testamento referências à relação entre fé cristã e vida política, convém notar que a doutrina neotestamentária sobre a política não é sistemática, isto é, não abrange todos os elementos da realidade política; mas, por outro lado, não é abstrata, quer dizer, não toma a vida política no seu sentido geral. De certa forma, conforme salienta o teólogo Élio Gasda, “o Evangelho é indiretamente político. A vida de Jesus e o anúncio do Reino de Deus contêm significados políticos. Em plano formal, o Evangelho expressa a negação do caráter sagrado da política, ou seja, desvincula a religião dos poderes políticos. No plano substancial, pode-se afirmar que a vida e a mensagem de Jesus trazem consequências políticas”.[1]

Isso posto, atestamos a legítima possibilidade da relação entre religião cristã e política. Inclusive porque, além de ser historicamente constatável, essa relação pertence à estrutura mesma da revelação cristã, uma vez que a experiência e a teologia cristã estão condicionadas pelo fato histórico da libertação e constituição de Israel e, sobretudo, pela prática histórica de Jesus de Nazaré. Essa relação, portanto, pertence à essência da comunicação de Deus com o homem; uma relação que resguarda e potencializa a revelação d’Aquele que “não veio ocupar-se com os anjos, mas, sim, com a descendência de Abraão” (Hb 2, 16).

A esta altura parece-nos importante destacar as tipologias ou modelos dessa relação possível entre cristianismo e política. De acordo com o teólogo Ignacio Ellacuría, é possível identificar três possíveis modelos-tipos dessa relação[2]:

  1. A relação segundo a tipologia da substituição ou anulação, que supõe que o importante é a libertação, fundamentalmente, socioeconômica-política. A realização do Reino de Deus se dirige a essa libertação que, uma vez alcançada, poderá abrir-se a outros valores. A urgência e, consequentemente, o mais valioso e importante é alcançar o triunfo revolucionário. Ainda que se possa apelar à grandeza e extrapolação do “amor ao próximo”, na perspectiva dessa tipologia, pode-se chegar não só à ruptura com a Igreja visível, mas também ao abandono do cultivo da fé, caso ela venha impedir ou frear a luta revolucionária.
  2. A relação segundo a tipologia do apoio e prestação de serviço que considera que a fé mantém sua autonomia, mas faz o possível para pôr-se a serviço dos processos de libertação. Esse modelo, ao contrário do supracitado, não esgota a razão de ser da fé libertadora no “para” o processo histórico revolucionário, mas pensa que uma missão importante da fé é promover a luta pela justiça e, para que isso aconteça, ela deve optar por algum dos movimentos políticos. Não bastando colocar-se autonomamente a serviço dos oprimidos, se prefere, portanto, potencializar as forças que realmente possam tomar o poder ou manter-se nele, perdoando-lhes aquelas debilidades que a luta política leva consigo. Nessa tipologia, reduz-se a luta social e política à luta das organizações, como se a fé e a comunidade eclesial não pudessem realizar sua dimensão social e política por outros caminhos. Além disso, compromete-se a capacidade crítica da fé, frente às organizações políticas e sociais.
  3. A relação segundo a tipologia da colaboração social que parte do específico e, ao mesmo tempo, dos limites da fé diante dos processos de libertação. O específico da fé e da Igreja, neste caso, é a realização histórica do Reino de Deus que, por sua vez, tem dimensões social e política, ainda que não se esgote nelas. Nesse tipo de relação se salva a especificidade e a autonomia da fé e da instituição eclesial. Nem a Igreja nem nenhuma parte dela há de subordinar-se a nenhuma instância política. Porque uma coisa é o compromisso social em favor da justiça e outra coisa é a subordinação a outras organizações. Pode acontecer de a ação ou linha eclesial favorecer mais uma organização que outra, mas deve ser como uma consequência, não como um princípio.

O importante, acima de tudo, é considerar que a fé cristã, agindo como fermento (Mt 13, 33), possui incidência social e tem o Reino de Deus anunciado como boa notícia aos pobres e humilhados, como sua principal referência. Essa dimensão política da fé, contudo, não deve ser entendida como se fosse mera dedução de consequências ou aplicações políticas dela, mas como algo inerente ao ato da fé como tal, em seu contexto concreto de práxis histórica. Sua incidência na realidade concreta não é detalhe, mas garantia de sua verificação.

Frei Jeferson Felipe da Cruz, OSA

- Artigo publicado na coluna Theos, do Jornal Inquietude On-line, edição de março de 2024.


[1] GASDA, Élio Estanislau. Política, Cristianismo e Laicidade. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v. 47, n. 132, p. 204, mai./ago., 2015, p. 204.

[2] Cf. ELLACURÍA, Ignácio. Escritos teológicos I. San Salvador: UCA, 2000a, p. 313-353.

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