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jul/23

Conversão cosmológica: tarefa da teologia

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A trigésima quinta edição do Congresso da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (SOTER), com o tema Amazônia e o futuro da humanidade, recolocou em foco as reflexões ecológicas. Pelo que consta, a intenção do Congresso – enquanto espaço de reflexão e proposições – foi, em primeiro lugar, à luz do pensamento decolonial, ensejar a discussão sobre a situação dos povos originários, especialmente a valorização de suas culturas e tradições, e o necessário reconhecimento de seus direitos fundamentais diante das graves e recorrentes ameaças a que estão sistematicamente submetidos.   Em segundo lugar, o Congresso quis enfatizar o tema da ameaça climática. E, finalmente, destacar a relevância da “ecologia integral” e o que, especificamente, a ecoteologia, compreende como “o necessário cuidado de nossa casa comum”.[1]

A ecologia tem ganhado espaço nas reflexões teológicas contemporâneas. O fato, contudo, não deixa de gerar incômodos, incompreensões e críticas. Há quem acuse a teologia de desvio de foco e de objeto, ou de perda de identidade. De fato, a ecologia e os problemas ambientais, devem preocupar a teologia? Que ela fale de Deus e que possa falar do homem, aceita-se ou se pode aceitar. Mas ela pode dizer uma palavra pertinente sobre a relação do homem com a natureza? Certamente, sim. 

Obviamente, a palavra da teologia diante dessas realidades é sempre uma palavra propositiva. Aliás, conforme diz o teólogo belga Adolphe Gesché (1928-2003), “talvez seja esta uma das funções da teologia: propor suas próprias palavras, não certamente como dogmas e conceitos imediatamente operatórios, mas como conceitos transversais, ‘nômades’, circulando no interior do discurso dos homens para fazer pensar”.[2]

A proposição dessa palavra, contudo, deve acompanhar o lúcido reconhecimento de que, embora existam outras razões e raízes não-religiosas, a teologia também tem parte na crise ecológica que enfrentamos. A má compreensão do relato do Gênesis, especialmente do “enchei a Terra e submetei-a” (Gn 1,28), está na origem dessa civilização que legitimou a dominação da Terra pelo homem. E, por ter parte de responsabilidade na origem da crise, a teologia pode e deve, em espírito de conversão, dizer uma palavra que oriente e colabore para a superação dessa mesma crise.

Uma indispensável contribuição, nesse sentido, é a conversão da cosmologia. De acordo com o teólogo Leonardo Boff, por trás da crise sistêmica que atravessa o planeta e do debate sobre o futuro da Terra, estão em conflito duas cosmologias: a da dominação e a do cuidado.[3] E, ambas, remetem-se a princípios teológicos. A primeira entende a Terra, seus recursos e demais seres (inclusive humanos) como objeto de consumo: devem ser submetidos, dominados e usados. A segunda, ao contrário, reconhece o valor intrínseco de cada ser e não sua mera utilização humana; ao invés de dominar a natureza coloca o homem no seio dela em profunda sintonia e sinergia.

A força dessa cosmologia do cuidado reside no fato de “estar mais de acordo com as reais necessidades humanas e com a lógica do próprio universo. Se optarmos por ela, criaremos a oportunidade de uma civilização planetária na qual a vida da Terra e do ser humano, o cuidado, a cooperação, o amor, o respeito, a alegria e espiritualidade ganharão centralidade. Será a grande virada salvadora que urgentemente precisamos.”[4] 

Adolphe Gesché diz que “para que um projeto humano – como a salvaguarda e a integridade da criação – tenha todas as chances e obtenha sucesso, não basta que seja conduzido por uma vontade política, ecológica, econômica ou mesmo moral. É preciso que, além disso, esteja fundado sobre o plano filosófico e metafísico e, para nós, teológico. É preciso que haja conquista conceitual”[5] . Nas palavras de Leonardo Boff, é preciso “ir para além do aspecto econômico-financeiro da crise e descermos aos fundamentos.”[6]

Qual seria, então, o conceito que precisamos conquistar para fundamentar uma cosmologia diferente da atual? Aqui pode entrar em cena a oferta da teologia: a salvaguarda teologal da Terra. E como elaborar e oferecer isso? Qual seria o conceito teológico que pode salvaguardar a Terra?

Antes de responder a essas perguntas, é importante esclarecer que a oferta a ser apresentada circunscreve-se na tradição teológica cristã. As outras experiências religiosas e teológicas possuem outros argumentos. Mas naquilo que é próprio do cristianismo parece-nos importante destacar, como referência teologal, o seguinte: a Terra é morada do Logos. É claro que a Terra é nossa morada, nosso oikos. Como reza o Salmo 115, “o Céu pertence ao Senhor, mas a Terra, ele a deu para os homens” (Sl 115, 16). Contudo, ela não é somente isso, e aqui está o cerne de nossa reflexão: esta Terra também é morada do Logos divino. E o é, conforme lembra Gesché, por quatro motivos.

Primeiro, a Terra é morada do Logos a título de eternidade: desde antes da fundação do mundo (cf. Sl 77,12), a Sabedoria de Deus (seu Logos) já estava “interessada” neste mundo dos homens. Estava junto de Deus “como mestre-de-obras, era seu encanto todos os dias, todo o tempo brincando em sua presença: brincava na superfície da Terra, encontrava suas delícias entre os homens” (Pr 8, 30-31). Em segundo lugar, a Terra é morada do Logos a título de criação: a profissão de fé “por quem todas as coisas foram feitas” marca com o seu selo toda a teologia cristã. A criação foi feita sob o modelo do Logos. “Ele é a imagem do Deus invisível o Primogênito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas, nos Céus e na Terra, as visíveis e as invisíveis” (Cl 1, 15-16). Em terceiro lugar, a Terra é morada do Logos a título de encarnação: “o Verbo se fez carne e armou sua tenda entre nós” (Jo 1, 14). E, finalmente, a Terra é morada do Verbo a título de parusia: Ele virá em sua glória. Virá para esta Terra que é sua. “É nesta Terra, e não em outro lugar, que o Pai lhe entregará todas as coisas. É nesta Terra, lugar de suas primeiras núpcias com a humanidade, que se prepara a mesa das núpcias eternas (cf. Lc 13, 29; 22, 30). A Terra é, até o fim, lugar de Deus, morada onde o seu Logos age.”[7] E além de morada do verbo a Terra, e toda criação, é “carícia de Deus” (LS, 84). E como tal deve ser reconhecida, tratada e proposta pela teologia.

Na tarefa da conversão cosmológica é indispensável à teologia e aos teólogos redescobrirem e valorizar a reverência ao Mistério que se esconde na natureza. Como disse o Papa Francisco na Laudato’Si (2015): “o universo desenvolve-se em Deus, que o preenche completamente. E, portanto, há um mistério a contemplar numa folha, numa vereda, no orvalho, no rosto do pobre. O ideal não é só passar da exterioridade à interioridade para descobrir a ação de Deus na alma, mas também chegar a encontrá-Lo em todas as coisas, como ensinava São Boaventura: ‘A contemplação é tanto mais elevada quanto mais o homem sente em si mesmo o efeito da graça divina ou quanto mais sabe reconhecer Deus nas outras criaturas’ ” (LS 233).

Fr. Jeferson Felipe Gomes da Silva Cruz, OSA


[1] Cf. SOTER. 35º Congresso da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião. A Amazônia e o futuro da humanidade: povos originários, cuidado integral e questões ecossociais. Cadernos de resumos.  Belo Horizonte: Soter, 2023, p. 11

[2] GESCHÉ, Adolphe. O Cosmo. Coleção Deus para pensar. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 6.

[3] Cf. BOFF, Leonardo. Reflexões de um velho teólogo e pensador. Petrópolis: Vozes, 2018, p. 101-106.

[4] BOFF, Ibdem, p. 104.

[5] GESCHÉ, idem, p. 75.

[6] BOFF, idem, p. 104.

[7] GESCHÉ, idem, p. 76-78.

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