A primeira memória textual sobre a Eucaristia que temos é a carta de Paulo dirigida à comunidade de Corinto (1Cor 11,17-34). Nesse fragmento temos uma exortação do apóstolo para a corrupção de uma das mais belas práticas eucarísticas.
A comunidade de Corinto celebrava a Eucaristia após um jantar fraterno. Essa é uma prática que certamente em algum momento de nossa história a vivenciamos, seja em nossas comunidades ou em família. Trata-se de um costume onde cada conviva leva algum alimento a ser partilhado, para que todos possam comer e festejar a abundância da vida e reforçar os laços de irmandade.
A motivação dessa carta foi a necessidade de reconduzir aquela comunidade a sua experiência eucarística originária. Visto que alguns indivíduos corromperam o culto com suas práticas mesquinhas, ao se esbanjarem com o próprio alimento e embriagam-se com sua própria bebida, enquanto outros passavam fome. Ou seja, aqueles que tinham em abundância empanturravam-se, e os que pouco ou nada possuíam acabavam passando fome. Como resultado, os avarentos não comungavam de outra coisa senão de sua própria condenação.
Comer da Ceia do Senhor implica, fundamentalmente, a partilha. Tomar parte na vida entregue do Senhor é dom, portanto, graça. Essa graça nos transforma, sara-nos e nos impele a ir ao encontro do outro, para anunciar quão alegre é o Evangelho do Reino. Isso nos faz compreender a exortação de Paulo que também nos é endereçada, em particular, quando nos esquecemos do aspecto convivial e fraterno.
A situação da comunidade de Corinto se repete ainda hoje: come-se e bebe-se nas celebrações eucarísticas e pouco se vê os sinais de fraternidade e de cuidado para com o outro. A fome de milhões de brasileiros muitas vezes não nos toca. Dado que a anestesia de nossa consciência da ‘práxis’ eucarística acaba por nos enclausurar em nossos mundos autossuficientes. A participação nesse banquete é um convite a corrigir as injustas desigualdades sociais entre as pessoas, setores e povos.
Pois se a Eucaristia existe para edificar e alimentar uma comunidade eclesial, esta não pode se furtar de sua realidade. Posto que ela existe em função do ambiente em que se encontra. Desse modo, uma Igreja, situada e dada na América Latina, que ceda às suas opções fundamentais a certas pressões neoconservadoras; que atenue o seu vigor profético frente as injustiças estruturais da sociedade ou, ainda, que anestesie sua opção preferencial pelos pobres e negue a fome como um produto dessa sociedade, será, sem dúvida, uma Igreja traidora do memorial do Senhor, indigna de ser fruto da Eucaristia.
O Pe. José Bortolini nos aconselha para que possamos “aceitar que a Eucaristia questione nossas celebrações eucarísticas que, não raras vezes, perderam sua dimensão e capacidade de se tornar lugar de discernimento, da partilha profunda, da comunhão com o senhor e com os irmãos, num só corpo”.
Frei Paulo Henrique Cintra, OSA
Comissão de Justiça e Paz
* Publicação na coluna Pé no Chão do Jornal Inquietude On-line, de dezembro de 2021.