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jun/23

A IGREJA EM CRISE (?): entre o significado e a relevância

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Os últimos censos nacionais atestam um expressivo declínio no número de católicos no Brasil. Entre outros fatores, o declínio numérico parece indicar que a Igreja está (ou continua) em crise em nosso país. O que está acontecendo? Por que a Igreja e o catolicismo estão nesse estado? Estamos diante de uma crise de significado ou é a relevância da igreja que está comprometida? Quais seriam as possíveis causas dessa crise instalada e crescente?

Antes de tudo, sendo realistas (sem eufemismos ou conformismos, é claro), precisamos convir que a crise é parte constituinte da Igreja. Em outras palavras: a crise da e na Igreja não é privilégio do século XXI. Desde os primórdios foi assim. O que justificou a celebração do Concílio de Jerusalém, em meados do século I, conforme a narrativa dos Atos dos Apóstolos (At 15), senão a crise causada pelo choque entre os costumes judaicos e a abertura da Igreja aos não judeus? Ou, ainda, o que motivou os chamados Concílios Cristológicos dos primeiros séculos, senão a crise causada pelo contato da mensagem cristã com as culturas e categorias conceituais advindas do helenismo? O que está por trás de Trento, senão uma crise? E o Vaticano II é fruto do que, senão de uma crise de identidade sofrida pela Igreja na modernidade? Esses e outros episódios mostram que a crise não é privilégio contemporâneo e que, como outrora, se for bem vivida pode ser uma oportunidade de conversão. Esse princípio básico, tão válido para os indivíduos, aplica-se às instituições com o mesmo valor.

É claro que para avaliar essa circunstância delicada, embora ela seja velha conhecida, a redução destas linhas não permite um estudo aprofundado das suas possíveis causas e razões. A impossibilidade de esgotar o tema, contudo, não nos impede de apresentar algumas considerações que podem ampliar o campo de visão e a compreensão de alguns sintomas e queixas.

Diante das crises, especialmente aquelas que antecederam e exigiram a realização dos eventos citados anteriormente, para garantir o cumprimento de sua missão no mundo, a saber: o testemunho de Cristo e o anúncio do Evangelho, conforme o mandamento do Senhor (cf. At 1, 8; Lc 16, 15), a Igreja precisou buscar saídas. No contexto da modernidade, por exemplo, viu-se obrigada a indagar ampla e profundamente as condições modernas da fé e da prática religiosa; e, visando favorecer a vitalidade cristã e católica, aplicou-se ao próprio aggiornamento. No continente latino-americano, o aggiornamento pressupôs e exigiu uma decidida opção preferencial pelos pobres e a consequente imersão nas periferias.

Curiosamente, em nossos dias (marcados pelas polarizações), dentre os muitos diagnósticos encontrados para a atual crise da Igreja, ganham relevo as críticas ao aggiornamento e à imersão nas causas sociais e populares. Muitos defendem que a “salvação” está no retorno à tradição (esquecendo-se que o aggiornamento nada mais é que o “retorno às fontes” e que a opção pelos pobres é a mais genuína evangelicae traditionis).

Será mesmo que a crise atual da Igreja é resultado do seu esforço por atualização ou da sua opção pelos pobres e pelas periferias? Será que a salvação está na volta para as sacristias ou nas pregações espiritualistas? Será que a saída para a Igreja é não ser “Igreja em saída”? É voltar-se para si mesma, fechar-se ao mundo e à realidade e seus clamores?

No século XX, com o advento da nova teologia política, representada sobretudo pelos teólogos alemães Johann Baptist Metz e Jürgen Moltmann, foram cunhadas duas categorias importantes para entender a relação entre a religião, os indivíduos e a sociedade: significado e relevância. De acordo com a aplicação dessas categorias, a religião tem duas funções no mundo: oferecer significado-sentido para os indivíduos e, ao mesmo tempo, mostrar-se relevante, contribuindo em aspectos fundamentais da construção do coletivo.

            Utilizando essas categorias, poderíamos dizer que, para alguns, a salvação da Igreja está na concentração e na dedicação ao “significado”; afinal, o homem e a mulher contemporâneos têm sede de transcendência e sentido. Esta deveria ser sua exclusiva tarefa: dar significado à existência por meio de ritos, símbolos, hierarquia, gramática própria, etc. (para quem pensa assim, as igrejas cheias e os eventos de massa – inclusive as multidões da madrugada – são sinais da “salvação” da Igreja); para outros, a salvação está na manutenção ou busca da relevância: garantir seu “lugar de fala” e sua inserção na busca de transformação da realidade.

            Ora, a Igreja é, antes de tudo, communitas fidelium, a comunidade dos que creem em Jesus. A fé em Jesus está na raiz da experiência cristã, fundamenta-a e a alimenta. Essa fé dá significado à existência de quem crê, como testemunha o apóstolo Paulo: “minha vida atual, eu a vivo na fé, crendo no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2, 20). E, como tal, essa fé define (ou deveria definir) as opções, o comportamento, a mentalidade, os gestos, enfim, a dinâmica da vida do crente. E isso não só no âmbito da intimidade (fé implícita), mas também, e sobretudo, no âmbito das relações sociais (fé explícita). Como disse o Papa Francisco: “o querigma possui um conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparecem a vida comunitária e o compromisso com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio tem uma repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade (EG, n. 177)”.

A fé implícita precisa ser explícita. Como disse o apóstolo Tiago: “se alguém disser que tem fé, mas não tem obras, que lhe aproveitará isso? Acaso a fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã não tiverem o que vestir e lhes faltar o necessário para a subsistência de cada dia, e alguém disser ‘ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos’ e não lhe der o necessário, que proveito haverá nisso? Assim também a fé, se não tiver obras, está completamente morta (Tg 2, 14-17)”. Contudo, as obras da fé explícita não podem ser resumidas à gramática ou ao simples mencionar o nome do Senhor. A confissão da fé se dá pela palavra, é verdade, mas muito mais pela conduta. Como disse o próprio Jesus: “nem todo que me diz ‘Senhor! Senhor!’ entrará no Reino dos Céus, mas só aquele que faz a vontade de meu Pai (Mt 7, 21)”.

A vontade do Pai, convenhamos, confunde-se com os valores mais profundos que a humanidade precisa redescobrir e assumir: liberdade, partilha, justiça, fraternidade... Conforme o oráculo de Isaías: “grita a plenos pulmões, não te contenhas, levanta tua voz como trombeta e faze ver ao meu povo a sua transgressão. [...] É a mim que eles buscam todos os dias, mostram interesse em conhecer os meus caminhos como se fosse uma nação que pratica a justiça. [...] E perguntam: ‘por que jejuamos e tu não o vês?’ [...] a razão está em que, no dia do vosso jejum, correis atrás dos vossos negócios e explorais os vossos trabalhadores; a razão está em que jejuais para entregar-vos a contendas e rixas, para ferirdes com punho perverso. [...] Por acaso não consiste nisto o jejum que escolhi: em romper os grilhões da iniquidade, em soltar as ataduras do jugo e pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar todo jugo? Não consiste em repartir o teu pão com o faminto, em recolheres em tua casa os pobres desabrigados, em vestires aquele que está nu e em não te esconderes daquele que é tua carne? (Is 58, 1-7)”.

Quando a Igreja menciona esses valores (liberdade, partilha, justiça, fraternidade, etc.), está mencionando o Evangelho. Quando a Igreja os pratica, está presentificando o reinado de Deus. Ainda que falte a referência verbal ao nome ou às categorias teológicas tradicionais, quando a Igreja propaga os valores do Evangelho, ela cumpre sua missão (testemunhar a Cristo e anunciar seu Evangelho), conserva-se relevante para o coletivo e, ao mesmo tempo, pode oferecer um projeto de sentido muito mais consistente para os indivíduos. Relevância e significado-sentido não são categorias contrastantes. Ao contrário, retroalimentam-se.

Conforme disse o teólogo Juan Antonio Estrada: “à pergunta pelo sentido responde a oferta de salvação das religiões. Estas querem mostrar como viver a partir de seus fundadores. A partir da perspectiva cristã, Jesus é o novo homem, que vem mostrar como realizar o plano de Deus para a humanidade e o caminho da salvação. Esta não se refere apenas ao além morte, mas se atualiza numa vida com sentido, numa forma de existência que vale a pena. A cristologia é o referente para a antropologia, já que Jesus mostra como e em que consiste a humanização do homem. E a novidade é que realizar a própria humanidade é a melhor forma de aproximar-se de Deus, de divinizar-se. Jesus mostra como ser pessoa em função de certos valores, os do reino de Deus, que são também divinos porque atualizam o que Deus quer. O elemento radical do projeto de Jesus está em sua humanidade como a forma histórica da filiação divina. Sua compreensão de Deus transtorna as concepções religiosas acerca do divino e do humano. Os preceitos religiosos subordinam-se a valores humanos a defender, que são também os valores de Deus. (Da salvação a um projeto de sentido, Vozes, 2018, p. 6)”.

A saída da crise (para a Igreja e, quiçá, para a humanidade) não está nem no humanismo fechado ao sobrenatural, nem também no espiritualismo desencarnado. Talvez, a saída esteja naquele equilíbrio sutil (e difícil de ser alcançado): um humanismo movido pela transcendência e uma transcendência sempre grávida de humanismo.

Fr. Jeferson Felipe Gomes da Silva Cruz, OSA

- Artigo publicado na coluna Theos, do Jornal Inquietude On-line, edição de junho de 2023.

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