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03
nov/23

A guerra como expressão do declínio da humanidade

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A segunda década do século XXI trouxe consigo uma série de desafios para a humanidade. Já no final de 2019, éramos alertados sobre vários casos de contaminação por um novo vírus que se espalhava de uma forma muito rápida e letal. A Organização Mundial da Saúde (OMS) nomeou a doença causada pelo novo vírus de COVID-19, e foi declarada uma emergência de saúde pública de importância internacional em 30 de janeiro de 2020 (que duraria até o dia 5 de maio de 2023) e, em 11 de março de 2020, como uma pandemia. Até os dias atuais, somam-se quase sete milhões de pessoas em todo o mundo que morreram por, ou em decorrência da, COVID-19.

A COVID-19 não afetou somente aqueles que foram infectados, mas, também, toda a humanidade em toda a sua forma de ser no mundo. A sociabilidade foi comprometida; o isolamento social e a tensão gerada pelo medo de contrair um vírus mortal comprometeu a saúde psíquica das pessoas; a economia era acometida por uma crise exógena (pelo fator biológico e não por um fator estritamente econômico); dentre inúmeras outras sequelas resultantes da pandemia.

Uma das narrativas adotadas pelos Estados Nacionais era de que a COVID-19 deveria ser encarada como uma guerra. Nesse período, foi muito comum se deparar com afirmações como: “Estamos enfrentando um inimigo invisível”; “Este é um dos piores desafios desde a Segunda Guerra Mundial”; “Estamos em guerra contra o vírus”; “Precisamos aprovar um orçamento de guerra para o enfrentamento da pandemia da COVID-19”; etc. Ainda que a pandemia não seja de fato uma guerra, ela foi tratada como tal.

Não bastando essa tragédia em proporção mundial, no dia 24 de fevereiro de 2022, iniciou-se o que viria a ser conhecido como “Guerra da Ucrânia”. E, no último dia 7 de outubro de 2023, retomou-se, de maneira desmedida, a guerra entre Israel e Palestina. Ou seja, o terrível pesadelo que parecia ter terminado acabou sendo seguido por eventos ainda mais tenebrosos do que o que se passou. A metáfora se materializou e foi responsável por trazer novamente uma insegurança internacional, agora, promovida não mais por um dado da natureza, mas por certos atores internacionais.

A guerra nunca foi embora exatamente, o que antes parecia ser um mundo “civilizado” e de paz, na verdade, era ainda um mundo brutal e violento. A grande diferença desses dois conflitos supracitados é a proporção, a repercussão e os atores internacionais envolvidos. Contudo, são muitos os conflitos bélicos espalhados pelo globo. A Etiópia está em guerra civil desde 2020; a Síria está em guerra civil desde 2011; o Sudão está em guerra desde 2013; o Iêmen está em guerra desde 2014 (entre Arábia Saudita e Irã); o Mianmar está em guerra civil desde 2021; a Armênia e o Azerbaijão lutam pelo controle de Nagorno-Karabath desde a década de 1990; esses são apenas alguns exemplos de conflitos que ainda estão em curso, para que não fiquemos apenas nos dois exemplos mais recentes: Rússia x Ucrânia e Israel x Palestina. De todo modo, esse ainda é apenas um recorte de um amplo cenário de conflitos internos, e entre países. De qualquer maneira, a guerra não voltou, ela sempre esteve no nosso meio.

Posto isso, parece-nos ser necessária uma discussão cuidadosa sobre a guerra. E, para tal, faremos um recuo histórico e partiremos de uma dialética da paz e da guerra.

Os estudos arqueológicos e antropológicos argumentam que a violência sempre esteve presente desde os primeiros primatas, e que se manifestava por meio de rituais e regras que visavam manter o controle e o domínio daquela coletividade[1]. Não obstante, a guerra como forma regular, organizada e estratégica de exercício da violência entre diferentes povos, surge a partir da criação das primeiras fronteiras territoriais e do nascimento das primeiras grandes civilizações.

Homero (séc. VIII a.C.) escreve um poema épico sobre a guerra. “A Ilíada”[2] é uma ode à Guerra de Troia (1194-1184 a.C.); trata-se, portanto, de um mito de origem da civilização helênica. O mesmo pode ser dito de Tucídides (460-400 a.C.), ao estudar sobre as causas da Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), ainda que este não tenha se proposto a refletir sobre a moral da guerra. Destarte, será Aristóteles (384-323 a.C.) quem irá defender a ideia de que toda e qualquer guerra deveria ter como fim último a “paz”, ainda que ele considerasse a guerra como uma “arte”[3].

Não obstante, foram Cícero[4] (106-43 a.C.) e Sêneca (4 a.C.–65 d.C.) que ascenderam ao conceito de “paz” como um valor ético universal. Foram eles que estabeleceram, por sua vez, os critérios jurídicos para uma “guerra justa”; que dar-se-ia por meio de uma autoridade legítima e que só poderia iniciar após esgotar todos os recursos diplomáticos[5]. Em decorrência disso, ao se consolidar o vínculo entre a religião cristã e o império romano, essa mesma ideia de “guerra justa” assimilará as verdades teológicas do cristianismo e os interesses do império, originando outro conceito já muito conhecido que é a ideia de “guerra santa”. Nesse contexto, a guerra não é ética, mas teológica; ela é uma guerra que visa defender e impor uma determinada concepção de fé, e purgar as demais. Ela não é ética porque, nessa perspectiva, o que está em jogo não é outra coisa senão o cumprimento da “vontade de Deus”. Logo, a paz não ocuparia mais o seu lugar de finalidade última; agora, substituída por uma vontade divina, a paz torna-se, dessa forma, um mero acaso, podendo se realizar ou não ao longo da história.

Somente no século XVII é que Hugo Grotius[6] (1583-1645 d.C.) – leitor de Cícero – proporá a retomada da ética para se pensar a guerra, ele postula a hipótese de que ela é um direito “natural” ainda que Deus não exista. Tanto Grotius quanto Thomas Hobbes[7] (1588-1679 d.C.) entendiam que os conflitos entre povos e nações eram inevitáveis, sobretudo ao considerar as mudanças institucionais que se consolidavam em seu tempo.

Depois da Reforma Protestante, a Europa “ocidental” passa por um reordenamento religioso e, sobretudo, político, onde os estados europeus se autonomizavam. Com esse novo ordenamento por meio de Estados Nações, tornou-se necessária a instituição de uma série de regras que servissem para arbitrar os conflitos de dois ou mais estados “soberanos”, esse ordenamento jurídico foi assinado e ficou conhecido como “Acordo de Westfália” (1648).

O que Hobbes e Grotius buscavam evidenciar consistia nos limites desse acordo, sobretudo por causa das competições dessas múltiplas soberanias e pela ausência de um “poder global”. Em outras palavras, um acordo firmado por diferentes e desiguais Estados Nacionais não seria suficiente para evitar ou legislar as guerras.

Immanuel Kant (1724–1804) herdará esse dilema e proporá uma solução. Kant foi um adepto da criação de uma liga[8] ou federação que fosse capaz de garantir a “paz perpétua” entre os povos. Ou seja, caberia a essa federação o cumprimento de um papel em âmbito global análogo ao do “Leviatã”, de Hobbes. Essa tese iluminista foi determinante para as decisões do Congresso de Viena, depois do fim das Guerras Napoleônicas (1815) ao se formar a Quádrupla Aliança, cujo objetivo era pacificar o velho continente.

Essa tese extrapolou o período iluminista e chegou até nós hoje, ela foi responsável pelos contornos das nossas instituições internacionais que se consubstanciariam a partir do fim da Primeira Guerra Mundial com a criação das Ligas das Nações na Conferência de Paris (1919) e, sobretudo, com a criação das Nações Unidas (ONU) depois do fim da Segunda Guerra Mundial (1945).

Não obstante, o que se verificou já nos primeiros anos que sucederam à Segunda Guerra Mundial foi um esvaziamento da ONU. Essa instituição não obteve êxito de consolidar-se como um Estado Universal, restando-lhe apenas o caráter mediador dos Estados Nacionais.

Todavia, como em política não existe espaço vazio, essa função de Estado Universal foi substituída pelo que hoje é conhecido como “Potência Hegemônica”.  Os EUA (a potência herdeira e líder da “civilização europeia”) assumiu essa cadeira já no fim da Segunda Guerra Mundial, por meio da sua supremacia ideológica, econômica e militar. Ainda que houvesse um antagonismo por parte da União Soviética, a influência estadunidense se fez bastante sentida. E, com o fim da Guerra Fria, o sistema internacional experimentou pela primeira vez uma situação muito próxima da ideia de um mundo globalizado e unipolar[9].  

Depois do fim da Guerra Fria e até hoje, esperou-se que esse mundo unipolar experimentasse finalmente a “paz perpétua”, não obstante, a humanidade tem assistido a uma guerra quase ininterrupta entre povos de filiação iluminista e cristã, e povos islâmicos, como prolongação de um conflito milenar e como prenúncio do que se deve esperar do séc. XXI, em termos da dialética perene da guerra e da paz.

Esse sistema interestatal e capitalista criado pela modernidade e expresso em sua plenitude por meio dessa potência hegemônica que se instaura parece precisar da competição e da guerra para seguir acumulando poder e riqueza. Portanto, se nos demorarmos um pouco mais na história dos últimos cem anos, veremos como se deu a transição do poder global, como ele se concentrou nas mãos dos EUA. Para garantir e perpetuar a expansão da sua hegemonia, os EUA não se submetem ao cumprimento das regras daquelas instituições (ONU) que eles mesmos ajudaram a construir.

Desse modo, nesse sistema interestatal, “nunca houve nem haverá ‘paz perpétua’, nem hegemonia estável, porque tudo indica que se trata de um sistema que precisa da guerra para poder se ordenar e ‘estabilizar’, ainda que seja de forma sempre transitória”[10].

Em suma, as experiências mais destrutivas e desumanas oriundas das duas últimas guerras mundiais não foram o suficiente para que superássemos a pequenez das razões de se fazer guerra. A virada do milênio e o advento do século XXI em toda a sua expectativa de mudança e superação das nossas contradições não garantem à humanidade um futuro de paz. O fim da pandemia da COVID-19, em sua ingenuidade, prometeu um mundo mais consciente, pacífico, humano e ecológico. O que nos parece é que essas promessas foram esvaziadas tão logo retomamos o nosso antigo modo de viver.

Portanto, urge um esforço coletivo de retomar a nossa história, o caminho percorrido, e as razões das nossas instituições e de nós mesmos nos constituirmos de uma forma tão belicosa e destrutiva. Não será num julgamento rápido, rasteiro e superficial que encontraremos as razões dos nossos conflitos, nem da sua superação. Parece-nos necessário extrapolar as narrativas dualistas e maniqueístas de bem e mal que circulam em nossos noticiários e redes sociais, e insistem em encontrar vítimas e culpados, procurando justificar, assim, os terrores da guerra. Enquanto não superarmos a necessidade da guerra como meio de resolução dos conflitos, estaremos condenados à debilidade, visto que guerra não é expressão de poder, mas do fracasso da humanidade. “A guerra é mais frágil do que forte, porque não suporta a vida!”[11]

Frei Paulo Henrique Cintra, OSA
Comissão de Justiça e Paz e Cuidado com a Criação

* Publicação na coluna Pé no Chão do Jornal Inquietude On-line, em outubro de 2023.


REFERÊNCIAS

[1] CHUBERT, G; MASTERS, R. (orgs.). Primate politics. Carbodale: Southern Illinois University Pres, 1991.

[2] HOMERO. Ilíada. São Paulo: UBU, 2018.

[3] Cf. ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Edipro, 2019.

[4] CÍCERO. On duties. Cambrisge: Cambridge University Press, 2009.

[5]Existem dois tipos de conflito: um procede através do debate, o ouro através da força. Já que o primeiro é a preocupação própria de um homem, mas o segundo é próprio dos animais, só se deve recorrer ao segundo se for impossível empregar o primeiro.” (CÍCERO, 2009, P. 14)

[6] GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz. Ijuí: Unijuí, 2005.

[7] HOBBES, T. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Victor Civita, 1983.

[8] “Essa liga não se propõe a adquirir qualquer poder do Estado, porém somente a manter e garantir a liberdade de um Estado para si mesma e, ao mesmo tempo, para outros estados coligados, sem que estes, todavia, devam por isso submeter-se a leis públicas de coação exercida por eles. A exequibilidade dessa ideia de federação, que deve estender-se pouco a pouco a todos os estados, e assim conduzir à paz eterna.” (KANT, apud GUINSBURG, 2004, p. 49)

[9] Cf. FIORI, José L. Sobre a Guerra. Petrópolis: Vozes, 2018. p. 91.

[10] FIORI, J.L.; MEDEIROS, C & SERRANO, F. O mito do colapso do poder americano. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 31.

[11]Cf. RESIDENTE. Guerra. Porto Rico: Fusion Media Group: 2017. Disponível em: https://open.spotify.com/intl-pt/track/04zodNGYYLI7Q7DsFgQAql?si=c865aab0cfe6496d.

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