Fale com o animador vocacional

Artigos

21
jun/22

O Outro como realidade latino–americana

Imagem
Imagem

Ao prosseguir com a reflexão do nosso último texto, ao mesmo tempo que ampliamos o nosso leque de observação, deparamo-nos com uma condição que é pouco apreciada ainda hoje, especialmente se considerarmos a indiferença brasileira. Trata-se, portanto, da condição latino-americana.

Ainda nesse exercício de se colocar sob o crivo da suspeita a nossa razão e a sociedade em que vivemos, surgiu na América Latina uma contribuição singular para a formação da identidade de nossos povos. Referimo-nos à Teoria da Dependência, que abriu caminho apontando a assimetria econômica existente entre centro-periferia, com o desenvolvimento do Norte como causa do subdesenvolvimento do Sul.

Essa teoria foi o primeiro passo para um desabrochar de uma Filosofia de Libertação. Ou seja, ela se sustém na descoberta do “fato” opressivo da dominação, em que sujeitos se constituem senhores de outros sujeitos, no plano mundial (com a expansão europeia e o advento da “Modernidade”) centro-periferia; no plano nacional (elites - massas, burguesia nacional -, classe operária e povo); no plano erótico (homem – mulher); no plano pedagógico (cultura imperial, elitista, versus cultura periférica, popular); no plano religioso (o fetichismo em diferentes níveis); etc.

Essa experiência inicial vivenciada na América Latina se expressa bem na categoria do “outro” como “pobre”. O pobre, o dominado, o índio massacrado, o negro escravo, o asiático das guerras do ópio, o judeu nos campos de concentração, a mulher objeto sexual, a criança sujeita a manipulações ideológicas não conseguirão tomar como ponto de partida, pura e simplesmente, a “estima de si mesmo”. O oprimido, o torturado, o que vê destruída a sua carne sofredora, todos eles simplesmente gritam, clamando por justiça.

Desse modo, a origem radical de tudo não é, aqui, a afirmação de si; para isso é necessário refletir, aceitar-se como um valor e descobrir-se como pessoa. Estamos na presença do escravo que nasceu escravo e que nem sabe que é uma pessoa. Ele simplesmente grita. O grito é a protopalavra ainda não articulada, interpretada de acordo com o seu sentido apenas por quem “tem ouvidos para ouvir”. Trata-se, portanto, de uma interpelação primitiva. Certamente alguém deverá possuir alguma resposta responsável ao apelo do Outro. Isso é uma questão de consciência ética e de afirmação de si mesmo. Antes, o “eu próprio” do “ouvinte responsável” só se afirma como um valor à medida que “antes” tiver sentido o impacto da súplica do Outro, com anterioridade a qualquer reflexão possível.

A responsabilidade, ou ainda, o assumir o Outro precede a qualquer consciência reflexiva. Isto é, só respondemos com responsabilidade a presença do infeliz quando este já nos “comoveu”. É no “ato de justiça” para com o outro, enquanto resposta e cumprimento do ato de justiça exigido antes pelo Outro, que o “nosso próprio Eu” se autocompreende, reflexivamente, como um valor.

A anterioridade do outro que interpela constitui a possibilidade do “eu próprio” enquanto reflexivamente valioso, que passa a ser, então, o fundamento do ato de justiça para com o Outro. É um círculo, “iniciado”, porém, pelo Outro.

O projeto da organização social vigente justifica a opressão do oprimido e a exclusão do Outro. Em oposição a esta, pouco a pouco se vislumbrou a utopia, e com isso surgiu o projeto de libertação do Outro. Trata-se da formação de outra realidade, constituída com o que há de melhor na anterior, partindo da exclusão e da negação daquele que é tido como Outro, ao afirmá-lo. É a partir dessa afirmação que se sustém a realidade latino-americana.

Frei Paulo Henrique Cintra, OSA
Comissão de Justiça e Paz e Cuidado com a Criação


* Texto publicado na coluna Pé no Chão do Jornal Inquietude On-line, em junho de 2022.
*Imagem: Grito mudo - Miriam Verdejo Velasco

+ Mapa do Site

Política de Privacidade
Cúria Provincial Agostiniana Rua Mato Grosso, 936, Santo Agostinho Belo Horizonte - MG, 30190-085 +55 (31) 2125-6879 comunicacao@agostinianos.org.br

Fique por dentro de tudo o que acontece na Província. Cadastre seu e-mail para receber nossa Newsletter.