Embora a filosofia seja posta comumente num pedestal muito elevado, tornando-a inacessível à maioria das pessoas, é incorreto pensar que ela não nos diz respeito. Com isso queremos dizer que a filosofia está mais próxima de nós do que parece, posto que ela é profundamente marcada pela cultura e pela história, por conta disso, ela assume sempre uma forma política.
Para Hegel, a filosofia nasce de uma cisão civil na vida social. Isto é, ele compreende que toda crise de uma sociedade é um parto da filosofia. Pe. Vaz, como um bom leitor de Hegel, defenderá que a filosofia possui um paradigma jurídico ao se instituir como um tribunal da razão. Esse tribunal – de última instância – é responsável por tomar uma decisão definitiva, embora não dogmática, dado que ela se institui criticamente sobre a crise de uma sociedade.
A nossa sociedade, embora seja periférica, também participa da sociedade racional e ocidental. Portanto, a sociedade que conhecemos é fundada numa ideia de que a razão é seu núcleo duro, à vista disso, a filosofia, é o que nos possibilita a todos, de forma democrática, termos acesso ao coração de nossa civilização por uma reflexão esclarecida.
O Brasil possui uma sociedade periférica com características próprias, vulnerável, precária, com tenuidades culturais de raiz. Ao mesmo tempo, temos uma origem jurídica grega, ou seja, uma estrutura de juízo reflexivo. Por conta disso, em qualquer crise civilizatória pode aparecer a necessidade de um julgamento entre justo e injusto. Desse modo, a ideia de justiça é fundamental para a nossa racionalidade, ou, ainda, para o nosso fazer filosófico.
Assim sendo, para Pe. Vaz, será na ruptura da vida imediata de um corpo social que a consciência dessa sociedade terá que dar razões para a sua existência. Visto que, com a ruptura social, torna-se necessário a capacidade de se distinguir racionalmente o justo do injusto, o certo do errado. Essa realidade é que atribui às diferentes sociedades o seu caráter de maturidade.
Embora Pe. Vaz não seja um historiador da cultura, ele data os anos 20 e 30 do século passado como um marco paradigmático da razão brasileira. Ou seja, são nesses vinte anos que a sociedade brasileira atingiu uma fase autorreflexiva. O cenário propício para o surgimento dessa razão é o marco do modernismo cultural, estético e artístico dos anos 20; e a reviravolta na cultura e sociedade brasileira que consistiu na revolução de 1930. Foi nesse momento histórico que surgiram as condições necessárias para que aparecesse orgânica e naturalmente numa sociedade a necessidade filosófica.
Logo, a distinção do justo e do injusto é o coração de um saber filosófico como expressão de uma sociedade que se funda pela razão. Uma sociedade que alcançou determinada maturidade parte de uma reflexão orgânica, isso significa que a sociedade está dividida e com dúvidas sobre si mesma. Portanto, possui uma consciência histórica específica.
Dessa forma, a necessidade de uma sociedade refletir sobre si mesma aparece em termos culturais e sociais no Brasil no momento em que acontece algo em que passamos para uma "consciência amena do atraso”, como nos diz Antônio Cândido. Isto é, a passagem da ideologia de um país jovem, que ainda vai construir o seu destino, para uma consciência catastrófica do subdesenvolvimento. No Brasil, essa última consciência aparece justamente nos anos 30.
Foi nesse momento da história brasileira que apareceu a nossa mais autêntica filosofia. A vida imediata do espírito - ou, ainda, essa ideia de nação jovem cujo futuro irá chegar quase que naturalmente - vai se deparar com a angústia de uma consciência amena do atraso, que aponta para a impossibilidade da realização desse sonho caso não seja superado o seu estado de desenvolvimento.
Na obra de Celso Furtado encontramos a ideia de “organismos multilaterais” ao referir-se às instituições que visam à superação do subdesenvolvimento ou à atenuação da exploração capitaneada pelos países desenvolvidos. Esse conceito furtadeano, além de uma tentativa de superação de uma resignação social de caráter dependente, em outros termos, pode ser interpretado como um nome técnico para o conceito de injustiça.
Essa consciência catastrófica da condição de subdesenvolvimento desnuda a miséria assombrosa da nossa condição colonial ainda não superada. Essa tomada de consciência não é outra coisa senão um chamado a uma ‘práxis’ libertadora. Por conta disso, a filosofia coloca o Brasil sob julgamento, e a acusação é a injustiça crônica, estrutural, que remonta a sua fundação, e se replica, amplifica e possui inúmeras faces.
Em suma, para Pe. Vaz, a filosofia é um empenho intelectual que encara, do ponto de vista da racionalidade, o problema da justiça. Logo, não se trata apenas de um enfrentamento emocional, embora este não esteja rejeitado, mas, sim, um imperativo peremptório de assumir a justiça pela raiz.
Frei Paulo Henrique Cintra, OSA
Comissão de Justiça e Paz e Cuidado com a Criação
* Texto publicado na coluna Pé no Chão do Jornal Inquietude On-line, em fevereiro de 2022.