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abr/25

Ser espiritual no século XXI – Antes de ser religioso, é fundamental ser espiritual

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“Deus é mais íntimo a nós do que nós a nós mesmos” (Santo Agostinho, Confissões III, 11)

Uma das questões mais importantes para o ser humano, no atual contexto civilizacional, é a realidade atravessada de incertezas e de indiferença ao diferente e novo, de um consumismo desenfreado e de um grande poder tecnológico que faz do ser humano uma experiência de “tecnofeudalismo”, de fundamentalismos e de pluralidade cultural e moral - constatação que é responsável na construção das subjetividades humanas e dos progressos em vários campos (medicina, educação, tecnologia, entre tantos outros) - e, ao mesmo tempo, o crescimento da desigualdade social, a destruição do equilíbrio ecológico planetário e o poder atômico que pode provocar o extermínio da vida na Terra. Tudo isso deveria ser fonte e razão para o cultivo da espiritualidade. Entendendo espiritualidade como uma forma de ser! Em outras palavras, espiritualidade como uma maneira de viver e de se posicionar, de acreditar e esperançar, de resistir e lutar diante desses desafios a favor da vida humanizada e libertada de tudo que a apequena e exclui, a aliena e destrói. Ser espiritual é ser uma pessoa de outro modo – deixando de viver uma fé infantil que instrumentaliza e manipula Deus ou o sagrado/divino para se ajustar ao desejo de onipotência.

Nesse sentido, essa nova forma de ser pressupõe resgatar a dimensão de profundidade. Todo ser humano é constituído de uma exterioridade (corporeidade), de  uma interioridade (mente humana ou a composição construída pelo universo psíquico) e de uma profundidade. Por isso, ele é capaz de ir além do aparente, do que se vê, escuta, pensa e ama. Pode, na experiência da profundeza, aprender o outro lado das coisas – as coisas não são apenas o que se vê na exterioridade delas, porque carregam um símbolo e uma metáfora para outra realidade que a transcende. Atrás de uma floresta, do olhar de um idoso ou de uma criança, de um ipê-amarelo florido, de uma reciprocidade no amor, há uma evocação que só a profundeza pode captar. Na experiência do espírito, encarna-se o culto que o Vivente (o Deus de Jesus), o Transcendente quer e mostra a forma de O conhecer e revelar.

A espiritualidade tampouco é exclusividade ou monopólio de uma pessoa, uma comunidade, uma instituição religiosa ou um grupo de seletos. Ela se encontra em todas as pessoas e em todos momentos da vida – o problema é não se abrir à profundeza dentro de nós para experienciar a espiritualidade. “Quanto mais conscientemente vive e age uma pessoa, quanto mais cultiva seus valores, seu ideal, sua mística, suas opções profundas, sua utopia... mais espiritualidade tem, mais profunda e mais rica é sua profundidade. Sua espiritualidade será o talhe de sua própria humanidade. A espiritualidade não é patrimônio exclusivo de pessoas especiais, profissionalmente religiosas, ou santas, nem sequer é privativa dos crentes. A espiritualidade é patrimônio de todos os seres humanos.”[1] E mais: “Se por qualquer motivo, com honradez sincera, uma pessoa rejeitasse em consciência as práticas religiosas ou a pertença a uma religião confessional, mas vivesse de verdade as propostas profundas da veracidade existencial, nem por isso ela se perderia, nem Deus se incomodaria”[2]. Enfim, a espiritualidade nasce do profundo do ser humano, e o faz ser, cada vez mais, humano cheio de humanidade. Não cultivar a humanidade é embrutecer-se e deixar de buscar em todas as coisas um significado para nossas vidas e as experiências que elas nos fornecem. Quer viver uma vida mais divinizada, santa? Humanize-se!

Também a experiência espiritual não se reduz a um espaço sagrado ou a um tempo sagrado ou religioso. O ser humano espiritual vive algumas características nessa trilha de perseguir e prosseguir rumo à espiritualidade, como[3]: a) a característica da “globalidade” – a espiritualidade é vivenciada, experimentada na compreensão de que ela tem a ver com o todo da vida, da história e do mundo. Não se reduz a um setor da realidade. A divindade em tudo se resplende, manifesta; vale dizer, em qualquer realidade se pode deparar com o apelo para a experiência do amor solidário e justo. A realidade no seu todo pode refletir o sacramental!; b) uma segunda característica, nessa perspectiva do sacramental, tem a ver com a dimensão “integradora” e interativa – não se vive a experiência do espírito no regime do separado: como se o corpo, o secular, a razão, a história, o social... deveriam ser substituídos pelo sagrado, a alma, a eternidade, a verdade inacessível... Essa visão dualista, patológica, estreita apenas prejudica vivenciar a espiritualidade. Espiritualidade que ocorre na totalidade da vida e da realidade, pois tudo está penetrado pela presença do espírito, da divindade e do transcendente. O espiritual se dá na experiência totalizante e holística, reencantadora e revigorante da vida. Importante compreender que a espiritualidade tem a ver com o todo e o tudo da vida existente na Terra e no universo; c) uma terceira característica ocorre na experiência do universo que está pleno de espírito porque é interativo, pan-relacional e criativo. Todas as coisas e todas as entidades participam de certo modo no espírito, na consciência e na vida do que vai acontecendo no mundo. A espiritualidade arranca o ser humano da autorreferencialidade, do egoísmo, e cria espaço para a coexistência, a cordialidade, coparticipação com tudo o que existe, a comunhão com todas as coisas; d) por fim, a espiritualidade se caracteriza pela diafania do divino permeando a totalidade da realidade. Todas as coisas, a vida humana e a história possuem uma profundidade que é o outro lado e seu mistério que remete ao Mistério. Não é necessário religar Deus e o mundo porque eles estão sempre perpassados mutuamente. Como já lembrou Paulo: “Deus não está longe de nenhum de nós. Nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17, 28).

Viver a espiritualidade é também entrar na esfera do Mistério, do contemplativo e da fascinação. Tudo favorecendo e contribuindo para uma vivência de toda comunidade humana: onde o ser humano mantém-se numa abertura curiosa, otimista e bonita à realidade; onde se desenvolve uma sensibilidade, um cuidado e uma compaixão face à fragilidade da vida em qualquer situação, sobretudo no que diz respeito às vidas vulneráveis e excluídas;  onde se mantém uma disposição permanente de aprender de qualquer fonte de saber e das tradições culturais, e de manter uma veneração e contemplação em face do que existe por trás dos fatos e acontecimentos (Hbr 11,1).   

Não é a religiosidade que faz o ser humano viver a mentira ou a verdade, mas a autenticidade, a veracidade e a coerência; vale dizer, a experiência no Espírito – “Em espírito e verdade quer ser adorado o Pai” (Jo 4, 23). Por isso, viver e fomentar a espiritualidade no atual contexto societário é fundamental. Nessa atual civilização mundial atravessada de violência, de destruição da natureza, de mentiras nas redes sociais, empobrecimento da vida humana e social, do culto ao Capital, da idolatria ao poder e ao consumo etc., a vida espiritual deverá levar ao empoderamento da vida e, nessa orientação, assumir um compromisso de promoção e defesa da vida em qualquer esfera. No atual mundo dinamizado pela hipertecnologia, por uma cultura atravessada pelo narcisismo e pela secularização, por um neoindividualismo e um neoconservadorismo, há que se tomar ciência e consciência da necessidade de se desenvolver uma espiritualidade que dê esperança e teimosia na defesa da vida, mais humanidade para com a humanidade, mais amor com a Mãe Terra. Caso contrário, será difícil seguir acreditando no futuro da vida na e da Terra. Nós somos nossa espiritualidade, nossa espiritualidade é o que somos no nosso modo de ser, agir, acreditar e sonhar. Sendo assim, aprofundar na espiritualidade é viver “uma experiência onde o mistério da vida e o mistério de Deus são vividos numa única dimensão”(Pablo Richard) – Santo Irineu disse: Gloria Dei vivens homo, gloria autem hominis vita Dei (A glória de Deus é o homem vivo e a glória do homem é a vida de Deus).  Enfim, o Vivente, o transcendente, o sagrado, o divino, nós os encontramos na vivência no e do cotidiano, ou seja, o que se vive no silêncio ou no ruído, na alegria e no grito do outro, nas conquistas ou nas lutas pela liberdade e a libertação de tudo que oprime a vida dentro do nosso dia a dia.

   Frei Luiz Augusto de Mattos, OSA

Artigo publicado na coluna Theos, do Jornal Inquietude On-line, de abril de 2025.

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[1] Pedro CASALDÁLIGA e José M. VIGIL, Espiritualidade da libertação, Editora Vozes, 1993, p. 26

[2] Ibid., p. 28

[3] Cf. Leonardo BOFF, Ecologia, mundialização, espiritualidade, Editoria Ática, 1993, p. 64

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