Refletindo sobre o Jubileu do Ano Santo de 2025, dedicaremos atenção a alguns aspectos da esperança na perspectiva bíblica.
Na Bula de convocação do Jubileu, o Papa Francisco toma como principal referência a Carta aos Romanos. Essa carta assinala uma passagem decisiva na atividade evangelizadora do apóstolo Paulo. A Igreja de Roma não foi fundada por ele, mas este sente um vivo desejo de lá chegar logo que possível, para levar a todos o Evangelho de Jesus Cristo, morto e ressuscitado, como anúncio da esperança que realiza as promessas, introduz na glória e não desilude porque está fundada no amor.
Tomando a carta como referência, o Papa salienta que “São Paulo é muito realista. Sabe que a vida é feita de alegrias e sofrimentos, que o amor é posto à prova quando aumentam as dificuldades e a esperança parece desmoronar-se diante do sofrimento. E, no entanto, escreve: ‘Gloriamo-nos também das tribulações, sabendo que a tribulação produz a paciência; a paciência, a firmeza; e a firmeza, a esperança’ (Rm 5, 3-4). Para o apóstolo, a tribulação e o sofrimento são as condições típicas de todos aqueles que anunciam o Evangelho em contextos de incompreensão e perseguição (cf. 2 Cor 6, 3-10). Mas em tais situações, através da escuridão, vislumbra-se uma luz: descobre-se que a evangelização é sustentada pela força que brota da cruz e da ressurreição de Cristo. Isso faz crescer uma virtude, que é parente próxima da esperança: a paciência” (n. 4).
De fato, a referência e explicitação mais adequada da esperança cristã encontramos na tradição bíblica. Segundo o teólogo José Comblin, “a Bíblia não é somente o livro de um povo oprimido, mas também o livro das promessas. Nesse livro, o povo oprimido lê seu futuro: sabe que lhe está prometido o destino de povo universal, de portador atual da libertação de toda a humanidade”.[1]
Seguindo essa lógica da permanente atualidade da Escritura, podemos entender, por exemplo, a experiência do teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer (1906–1945), vítima do nazismo. Na Bíblia, ele reconhece seu sofrimento, enquanto prisioneiro de um campo de concentração e, a partir dele, redescobre a esperança à medida que se configura ao aniquilamento de Deus. “A teologia depois de Auschwitz, anunciada por Dietrich Bonhoeffer, ensejou, nas últimas décadas do século XX, um pensamento pragmático que busca encontrar uma brecha nos becos sem saída da totalidade, desmascarando sua face de totalitarismo político: ‘Deus deixa que ele seja expulso do mundo e seja pregado numa cruz. Deus é impotente e fraco no mundo e somente assim está conosco e nos ajuda. Mateus 8,17 (“Para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta Isaías: ‘Ele tomou as nossas dores e carregou as nossas enfermidades”) indica claramente que Cristo não nos ajuda por sua onipotência, mas por sua fraqueza e seus sofrimentos. A famosa sentença de Bonhoeffer nos lembra, assim, o sentido da teologia moderna da kénosis, enquanto pilar de toda teologia cristã que anseia dar testemunho da força do Evangelho no momento preciso do derrubamento da História.”[2]
Justamente por isso, a Bíblia é a principal fonte na qual a teologia e a esperança cristã bebem e se alimentam. O povo de Deus é, nela, imagem da raça humana. A história do povo de Deus é, em certo sentido, metáfora da história humana: misto de alegrias e tristezas, encontros e desencontros, e mais que tudo, persistência da esperança. Como disse Comblin, “graças à Bíblia, os oprimidos têm um passado, uma memória que lhes permite pensar seu presente e projetar seu futuro”.
Contudo, não há apenas traços de esperança na Bíblia. O leitor honesto precisa concordar que a Bíblia é “uma enciclopédia de utopias e contrautopias”.[3] Nesse sentido, a primeira referência que poderíamos evocar, por exemplo, é a criação. De acordo com o livro do Gênesis, “a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo” (Gn 1,2), um cenário de completa desolação. A Palavra de Deus, então, cria tudo e, no final, vendo o que tinha feito, Deus reconhece que tudo “era muito bom” (Gn 1,31). Do caos, a força da Palavra e o Amor de Deus fazem surgir a vida. Isso é esperança.
Nesse mesmo relato da criação é possível encontrar outra referência de esperança: a igualdade entre o homem e a mulher (Gn 1,26-28). Essa esperança, por sinal, vai continuar aparecendo na Bíblia em diversas ocasiões e a partir de diferentes tradições. É o caso de Abraão e Sara, na tradição dos patriarcas e matriarcas (Gn 12); Moisés e Miriam, no grupo dos libertadores e libertadoras (Ex 2); Gedeão e Débora, na tradição dos juízes e juízas (Jz 4). Esses e outros exemplos asseguram a esperança da igualdade de gênero numa cultura marcadamente machista e patriarcal.
Mas nem tudo é esperança, como dissemos. Conforme lembra Tamayo, “junto às utopias, a Bíblia hebraica oferece não poucas contrautopias: a violência contra as mulheres até o feminicídio, o fratricídio de Abel por Caim (Gn 4); o ecocídio, quer dizer, a destruição da natureza; a maldade dos seres humanos (Gn 6). Tudo isso leva ao desencanto e à consciência do fracasso do próprio Deus, que se arrepende não de haver criado o cosmos, senão de haver criado o ser humano (Gn 6,6)”.[4] Não obstante esses exemplos de contrautopias há na Escritura a referência de uma esperança que se sobrepõe a todas as outras, ou melhor, uma esperança que concentra em si todas as outras e demais possíveis. Trata-se da esperança de Jesus: o Reino de Deus; entendido como unidade de transcendência divina e história humana; boa notícia; o âmbito para onde convergem o plano de Deus e as esperanças humanas. Nesse Reino se assenta o diferencial e particular da esperança cristã: misto de futuro e presente.
Frei Jeferson Felipe da Cruz, OSA
Artigo publicado na coluna Reflexão, do Jornal Inquietude On-line, edição de fevereiro/março de 2025.
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[1] COMBLIN, O Tempo da Ação: ensaio sobre o Espírito e a História. Petrópolis: Vozes, 1982, p. 86.
[2] Cf. MENDOZA-ÁLVAREZ, Carlos. O Deus escondido da pós-modernidade: desejo, memória e imaginação escatológica. Ensaio de teologia fundamental pós-moderna. São Paulo: Realizações, 2011, p. 199-200.
[3] TAMAYO, Juan José. Invitación a la utopia: estúdio histórico para tiempos de crisis. Madrid: Trotta, 2012, p. 183.
[4] TAMAYO, 2012, p. 188.