O ser humano é constantemente iludido por uma coisa simples, mas que nos inquieta profundamente: que o sentido da vida está na conquista de uma paz serena, estável e contínua. Esse é um erro crasso. A vida é feita das contradições existentes na própria natureza, interna e externa, da humanidade. Por isso, vivemos em um ritmo frenético de vida que nos ilusiona na medida em que nos vende que, quanto mais ocuparmos a vida com coisas materiais e realização de desejos pessoais, mais estaremos afastados das nossas dores, tristezas e angústias. O bem-estar que nos é vendido pelo capitalismo se repousa na conquista dos bens materiais externos ao ser humano e também sobre as coisas, sobre o corpo dos próprios seres humanos a serem consumidos em trabalhos, estudos e outros prazeres momentâneos.
Isso já tinha sido observado por Agostinho de Hipona desde seu tempo. Ele mesmo dizia sobre os seres humanos: “Agita-se então, acumula-se riquezas, preocupa-se, trabalha-se, dedica-se a coisas que tiram o sono, desgasta-se durante o dia e, à noite, entrega-se a todo tipo de medo. Para fazer crescer o tesouro, condena-se a alma à febre das preocupações.” (Sermão de Santo Agostinho 60, 2).
O convite que nos é feito por Agostinho é um pouco diferente. Ele propõe que reconheçamos as nossas imperfeições e não fujamos dos afetos e sentimentos angustiantes das nossas vidas. Assim, podemos refletir sobre o que acontece com o ser humano em relação ao todo da sua realidade e projetar as nossas esperanças no próprio Deus que nos criou, princípio e fim de todas as coisas no imaginário cristão. E como fazemos esse percurso?
Primeiramente, reconhecendo as nossas imperfeições de maneira honesta, radical e sem pieguismos. Ou seja, sermos verdadeiros com aquilo que sentimos, sendo capazes de reconhecer que temos sentimentos bons e ruins para com tudo o que nos acontece. Da mesma forma, devemos também voltar à raiz das razões que nos levam a sentir o que sentimos e sem “romantizarmos” o que vivemos, buscando culpados ou vítimas para as nossas ações cotidianas.
“Portanto, somos o dia, comparados aos infiéis. Mas, comparado ao dia em que ressuscitarão os mortos, quando este corpo corruptível se revestirá de incorruptibilidade, quando este corpo mortal se revestirá de imortalidade, somos ainda noite.” (Sermão de Santo Agostinho 49, 3.) Dessa forma, aflora-se em nós as coisas boas e ruins. Saber reconhecê-las e entender as suas manifestações é o primeiro passo.
Em segundo, ponderemos sobre as coisas que devemos abandonar e as que devemos manter em nossas vidas diárias. É o momento em que podemos julgar as nossas próprias ações e pensamentos para, assim, tomarmos as decisões que possam fazer com que nossa vida avance ou permaneça estagnada. Para isso, faz-se necessário sermos enérgicos conosco sem perdermos, obviamente, a ternura para com aquilo que foi criado por Deus, ou seja, o que somos e o que temos no transcurso das nossas vidas.
“Ao julgar, tome cuidado para amar a pessoa e odiar o vício, sem amar o vício por causa da pessoa e sem odiar a pessoa por causa do vício. A pessoa é seu próximo. O vício é, portanto, inimigo do seu próximo, e a amizade pede que se odeie o que prejudica seu amigo. Se você acreditar nisso, você agirá de maneira coerente com isso, pois o justo vive pela fé.” (Sermão de Santo Agostinho 49, 2.)
E, terceiro e último passo, busquemos na palavra de Deus a orientação para que não sejamos mais reféns das preocupações da vida, do tempo – passado ou futuro – e das imposições realizadas pela sociedade contemporânea. Aconselha-se que, a partir de uma reflexão sobre as nossas imperfeições, angústias, frustrações e dores, afloremos em nossa consciência a capacidade de mudar as nossas atitudes. Por mais que saibamos que não conseguiremos realizar essa tarefa de forma plena, instantânea e mágica, poderemos continuar o trabalho pessoal de sermos cada vez melhores, apoiando-nos na Palavra de Deus, que deverá ser o espelho pelo qual devemos olhar a nós mesmos. Somente assim, poderemos medir que o quanto vivemos também espelha a vontade de Deus no mundo.
“Você quer amar Deus? Torne-se justo, julgue-se, não se aplauda, castigue-se, endireite-se, corrija em você o que desagrada em você com razão. Use as Escrituras como um espelho; nelas você se verá sem mentira, sem adulação, sem levar em conta ninguém.” (Sermão de Santo Agostinho 49, 4.)
Refletir sobre si mesmo para curar a febre das preocupações da vida contemporânea. Essa deve ser uma das reflexões mais importantes ao longo dos anos que passam velozes entre cada um de nós. Como Agostinho de Hipona nos aconselha: “Imite, então, o médico. O médico ama seu doente na mesma medida em que odeia sua doença e, para libertá-lo dela, ele a persegue com todas as suas forças.” (Sermão 49, 3.) Comecemos, por nós mesmos, a viver essa pérola de sabedoria agostiniana deixada para toda a humanidade.
Frei Arthur Vianna Fereira, OSA
Artigo publicado na coluna Fala Agostinho, do Jornal Inquietude On-line, edição de Agosto de 2024.
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