“... como são loucos os que levam os seus ídolos, e os que oram a uma estátua de madeira, a um deus que é incapaz de os salvar!” (Is 45, 20)
Essa é uma passagem bíblica, junto a outras, que questionam a adoração de outros deuses feitos pelo povo de Israel e, como extensão, nos fazendo perguntar a que deus servimos. O Deus judaico-cristão é entendido, nas religiões advindas do Judaísmo e de outras denominações religiosas e perspectivas filosóficas também, como Aquele que está acima de outros deuses, Aquele pelo qual existimos, vivemos e somos (At 17,28), O Nome (הַשֵּׁם – HaShem, em hebraico), chamado também de Adonai (O Senhor, O Bendito) por não poder ser dito Seu Nome, expresso pelo tetragrama “יהוה”.
Dito isso, precisamos separar esse entendimento, se assim nos ajudar, do que seria, para certa corrente de pensamento, como a junguiana (Psicologia Analítica de C. G. Jung), uma negligência de aspectos humanos e que era creditada aos deuses, por assim dizer. O ser humano simboliza suas emoções, suas crenças, seus desejos, seus medos, etc. O que seria um deus da guerra (Ares, Marte, Hórus, Odim, Ogum) senão os desejos bélicos do ser humano? O que seria uma deusa mãe, esposa, guerreira (Gaia, Freia, Hera, Iemanjá) senão as tendências maternas, de ciúmes, de cuidado, de vingança, questões tanto positivas quanto negativas nas relações da nossa natureza? O que seriam os deuses e personagens da travessura, tricksters (Saci, Loki, Hermes, Mercúrio), senão a abertura humana para a negociação, para a comunicação, para os acordos, para a leveza nas questões muito técnicas e objetivas? O que seriam os deuses heróis (Hércules, Gilgamesh, Orfeu, Perseu, Jasão), senão a busca humana de se superar, de lutar, de conquistar, superar desafios? Cito alguns exemplos para não dizer de vários outros.
Nesse sentido, o que representa esses deuses, numa perspectiva simbólica, vai se enfraquecendo, sendo substituído pela pretensão humana de racionalizar e controlar tudo. Assim, mesmo que eles sejam deixados de lado, também não deixam de se fazer presentes: as guerras continuam, e não só simbolicamente, mas literalmente; os ciúmes continuam, os desejos de vingança continuam, as travessuras continuam. E mais: as pessoas são possuídas por esses sentimentos e emoções, não conseguem perceber o dano que causam e seguimos num círculo vicioso, ainda que achemos que, no século XXI, estamos no topo do conhecimento e desenvolvimento humano. Mas não. Estamos repetindo padrões de milhares de anos.
Assim, a Psicologia Analítica busca pensar os temas da idolatria de outra forma: não negando os deuses totalmente, mas olhando para eles, como fez Moisés no deserto ao levantar a serpente de bronze numa estaca para que não se deixassem esquecer do que as cobras eram capazes (Nm 21, 4-9). Devemos olhar para eles para perceber o quanto estamos seguindo seus caminhos e aprender, com as narrativas míticas, o que poderíamos fazer para não cair em suas armadilhas. Sair do Hades, de crises depressivas, entendendo quais os processos pelos quais ele sai do submundo; aprender a lidar com as relações disfuncionais como foi a de Eco e Narciso, ou a de Hera e Zeus ou Hera e Hércules, entre Deméter e Perséfone, entre Uranos e Chronos, entre inúmeros outros.
Portanto, não seguir ídolos é muito mais do que não dizer seus nomes. É olhar para eles e enfrentá-los de frente. Podemos estar prestando culto a eles sem termos consciência disso. Não os enfrentar, não olhá-los de frente nos leva a uma sociedade medicalizada, doente, perdendo o sentido, a não ser o de fazer e fazer, ter e ter, se cobrar e se cobrar cada vez mais, o que também é seguir os passos de outros deuses, os do trabalho (Hefesto, Vulcano, Ogum) que podem nos dirigir a outros caminhos de cultos inconscientes.
Frei Davidson Bertuce de Carvalho, OSA
Artigo publicado na coluna Theos, do Jornal Inquietude On-line, edição de agosto de 2024.
Imagem: Freepik